HIV no Brasil: um breve resumo do começo de tudo


Por Ícaro Kropidloski

Nos anos 1980, vivia-se no Brasil um clima de abertura política e liberdade sexual. Era o fim da ditadura e a juventude inspirava-se em movimentos de contracultura que pipocaram pelo mundo. Nessa mesma época um vírus novo chegou sem avisar e causou estragos nunca vistos. Estamos falando do HIV e da AIDs, sigla em inglês para Síndrome da Imunodeficiência Adquirida. Foi em meados da década de 1980 que o Hospital Emílio Ribas, na capital paulista, registrou o primeiro caso de HIV no Brasil. A AIDS ficou conhecida como “câncer gay” e “peste do século”. A infecção por HIV significava uma sentença de morte e a certeza de muito preconceito, o único tratamento disponível era um medicamento chamado AZT, que dava alguma sobrevida aos pacientes. 

Para se ter uma ideia da dimensão da epidemia, apenas em 1983, 1.283 pessoas morreram no Brasil devido complicações de saúde acarretadas pela Síndrome da Imunodeficiência Adquirida. A alta incidência do vírus entre homens gays reforçou o estigma e a ideia de “grupos de risco” era ventilada na mídia e na comunidade científica. Existia uma forte ideologia moral que rondava (e ainda ronda) o HIV, associando ele a pessoas “promíscuas” e reforçando a ideia de que só se infectaria quem fizesse parte dos 4Hs: homossexuais, heroinômanos (usuários de heroína e trocas injetáveis), hemofílicos e haitianos. 


Os hemofílicos, os órfãos da AIDS e as mulheres 

Ricardo Tapajós, médico infectologista, explicou durante entrevista ao documentário Cartas para Além dos Muros, que os hemofílicos, assim como as crianças e as mulheres cisgêneras e heterossexuais, integravam um grupo de pessoas com HIV melhor visto pela sociedade e pelos médicos. Havia uma distinção baseada no preconceito, uma ideia de que existiam os “coitadinhos” e os “bem feito”. Ou seja, a algumas pessoas cabia solidariedade e a outras o estigma. Como de costume até hoje, infelizmente algumas vidas valiam mais que as outras. 

O cartunista Henfil e seus irmãos Betinho e Chico Mário eram hemofílicos, possuíam uma doença hereditária ligada a problemas de coagulação do sangue, fazendo com que fossem mais suscetíveis a hemorragias, e necessitavam de transfusões contínuas. Os três morreram por complicações em decorrência da AIDS, visto que não havia realização de testes e o sangue de doadores infectados era transfundido em pacientes até então livres do HIV. A transfusão de sangue era responsável por 15% das contaminações no Brasil. A atuação de Betinho foi essencial para que o Ministério da Saúde criasse regras exigindo a testagem do sangue, o que tornou as transfusões seguras no país. Vale lembrar que neste período 80% dos bancos de sangue pertenciam à iniciativa privada, que, para conseguir o maior número possível de sangue, remunerava os doadores. Em 1988, com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS), este cenário mudou. 

Existiam também orfanatos que acolhiam os “órfão da AIDS”, crianças que perderam suas mães e pais para o vírus e que podiam ou não ter HIV. Existia, nestes casos, o risco de contaminação vertical, quando o bebê é infectado durante a gestação, parto ou amamentação. O Padre Júlio Lancellotti trabalhou com crianças que viviam com o HIV. Ouça o relato dele clicando aqui

Além disso, as primeiras comunicações científicas sobre infecção do HIV e a saúde da mulher (em uma perspectiva cisgênera), com suas questões específicas, foram divulgadas em 1993, ou seja, doze anos após o descobrimento da doença. Eram comuns casos de mulheres cisgêneras e heterossexuais, donas de casa em relacionamentos monogâmicos, serem infectadas pelos próprios maridos. 


O Movimento 

Em 1978 surge, nas bancas de todo país, o jornal Lampião da Esquina, dedicado a temas como sexualidade, cultura, gênero e discriminação racial. Um ano depois homens gays de São Paulo criam o Somos – Grupo de Afirmação Homossexual e em 1980 é fundado em Salvador o Grupo Gay da Bahia (GGB). Há debates sobre publicações anteriores ao Lampião e grupos que precederam ou foram contemporâneos ao Somos e ao GGB, mas estas iniciativas foram consideradas pioneiras pelo impacto que tiveram enquanto embriões do que conhecemos hoje como Movimento LGBTQIA+. 

E o Movimento não nasce dissociado da questão do HIV, visto que foi a pressão da sociedade civil organizada que garantiu avanços sobre prevenção, conscientização e tratamento. Jovanna Baby, traviarca brasileira e presidenta do Fórum Black Trans Brazil - Fonatrans, costuma salientar que as travestis são “filhas do HIV”, pois a epidemia foi um divisor de águas que “tirou os debates do armário”. O Grupo de Apoio à Prevenção à Aids (GAPA), a Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS (ABIA) e outras iniciativas surgiram nessa época. 

Cartaz Transe Numa Boa - GAPA. Acervo do Museu da Diversidade Sexual


O Palácio das Princesas

Na Rua Major Diogo 779, no bairro do Bexiga, em São Paulo, ficava o Palácio das Princesas, pensionato administrado pela travesti Brenda Lee. Em 1984 ela comprou o imóvel e abriu uma pensão onde as travestis eram bem-vindas. Um tempo depois, o local virou uma casa de apoio que tinha o objetivo de acolher travestis expulsas das suas famílias e/ou que tinham HIV. 

Nos primeiros anos Brenda Lee arcou sozinha com todas as despesas do espaço, levou os pacientes ao médico e pagou inclusive seus enterros. A partir de 1988 houve um acordo com a Secretaria da Saúde de SP e o Palácio passou a receber um aporte financeiro. Em 2008, anos após sua morte, foi criado o Prêmio Brenda Lee, concedido quinquenalmente por ocasião das comemorações do Dia Mundial de Combate à Aids e aniversário do Programa Estadual DST/AIDS do Estado de São Paulo.

Brenda Lee (à direita) no Palácio das Princesas. Imagem: divulgação internet.


A luta por tratamento 

Em 1996, Nair Brito, mulher cisgênera que vivia HIV, teve a iniciativa de pleitear judicialmente o tratamento, escorada pela Constituição Federal. Nem todas pessoas tinham condições de arcar com as novas medicações, já mais eficazes, que estavam disponíveis. Este foi o primeiro passo rumo à disponibilidade de 100% do tratamento pelo SUS, a Lei Nº 9.313, de 13 de novembro de 1996,  instituiu que “os portadores do HIV (vírus da imunodeficiência humana) e doentes de AIDS (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida) receberão, gratuitamente, do Sistema Único de Saúde, toda a medicação necessária a seu tratamento.” Lembrando que atualmente o termo "portador do vírus HIV" caiu em desuso porque reduz a pessoa à condição de "portadora" e que pode deixar de "portar" quando quiser, além de carregar um estigma. Prefere-se "pessoa vivendo com HIV", que reconhece a dignidade e a complexidade do indivíduo. Este termo enfatiza que viver com HIV é apenas um aspecto da vida da pessoa, evitando discriminação e promovendo respeito e inclusão.

O Brasil foi considerado modelo em prevenção e tratamento do HIV e da Aids, oferecendo tratamento e incentivando políticas públicas como distribuição de preservativos e gel lubrificante. Em 2007, o então Ministro da Saúde José Gomes Temporão chegou a quebrar uma patente para garantir um menor preço, fato até então inédito na comunidade internacional perante os grandes laboratórios.  A decisão reduziu em cerca de 72% o preço pago pelo Efavirenz, um medicamento que substituia o uso do AZT entre os pacientes com HIV. 

Filmes, livros e documentários sobre o HIV e a AIDs no Brasil 

- Documentário - Cartas para Além dos Muros, disponível na Netflix;
- Filme Nacional   - Os Primeiros Soldados, disponível na Apple TV;
- Livro - Sentença de vida: Histórias e lembranças: a jornada de uma médica contra o vírus que mudou o mundo de Marcia Rachid;
- Série - Betinho - No Fio da Navalha, disponível no Globoplay.


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**Este material integra o projeto Saúde e Cidadania Travesti e Transexual, uma parceria do Fórum Black Trans Brazil - Fonatrans com o Departamento de HIV/Aids, Tuberculose, Hepatites Virais e Infecções Sexualmente Transmissíveis do Ministério da Saúde, com recursos do projeto BRA 15/004 do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD).

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