Baiana e negra, fundadora da primeira organização exclusivamente trans do Brasil luta por direitos desde os anos 1970, mas critica elitização
O nascimento do movimento trans e travesti organizado
Apesar desse primeiro passo para uma organização política, a repressão e a violência continuaram. Jovanna Baby se mudou para o Rio de Janeiro em 1986, mas continuou a ser perseguida e a sofrer agressões da polícia por trabalhar nas ruas. Após dois anos no Rio, mais uma vez, um encontro mudou seus rumos: Celia Szterenfeld, uma psicóloga, a encontrou na Praça Mauá, no Centro do Rio, e a convidou para participar de um projeto social do Iser (Instituto de Estudos da Religião), como multiplicadora de informações. Ela aceitou, foi qualificada e passou a levar informações sobre prevenção de HIV/Aids e cidadania para outras mulheres trabalhadoras do sexo.
E o movimento em prol dos direitos acompanhou Jovanna com a mudança para o Rio. Diante da realidade violenta da população travesti, ela idealizou e ajudou a fundar a Astral (Associação de Travestis e Liberados) em 1992. “Acredito que a nossa maior conquista foi nos organizarmos social e politicamente. Lançar a Astral, considerada a primeira organização exclusivamente trans do Brasil e da América Latina, foi a nossa emancipação do movimento homossexual brasileiro”, afirma, orgulhosa.
A necessidade de separação, de acordo com Jovanna, foi resultado da marginalização sofridas pelas travestis. “O movimento gay nos apontava como estereótipo e queriam provar para a sociedade que ser gay não era aquilo; que nós éramos pervertidas, marginais, prostitutas. O movimento gay contribuiu muito para essa marginalização dos corpos trans negros, justamente para a sociedade centrar a maior força de preconceito e discriminação nas travestis, amenizando o lado deles”, critica.
Jovanna Baby enfrentou um sofrimento multifacetado. “Ser negra, trans e nordestina aguçou ainda mais o estigma, o preconceito, o abandono. Fechou muitas portas e me impulsionou para a latrina da marginalidade. Ouvíamos que o negro nasceu para ser macho, que deveria procurar uma laje para bater, uma casa para construir, para aprender a ser homem. Negros não podiam ser homossexuais, como nos chamavam”.
A Astral foi fundada por Jovanna Baby, Jossy Silva, Elza Lobão, Beatriz Senegal, Raquel Barbosa e Munique do Bavier: seis travestis pretas, das quais cinco eram nordestinas e uma carioca. Em 1992, o principal objetivo da associação era mitigar os efeitos da violência e a perseguição à população travesti que trabalhava nas ruas, mas outros marcos importantes foram alcançados a partir da organização do movimento nacional.
"Fundamos esse movimento tão importante, tão grandioso que impactou muitas vidas. Hoje existe um apagamento desse passado, e me entristece muito, como uma das fundadoras do movimento de travestis e trans no Brasil, saber que não temos o reconhecimento"
É possível listar já em 1995: a criação da Antra (Articulação Nacional de Travestis e Transexuais), atualmente a maior rede de pessoas trans do Brasil; a inclusão da letra “T” na sigla da comunidade; e a 1ª Marcha Trans, com a participação de 250 travestis de todo o Brasil, que partiu da Candelária em direção à Cinelândia com o objetivo de denunciar a violência policial. “Lançamos no Rio de Janeiro a primeira carteira do nome social do Brasil. Essa carteira trazia o nome civil e o codinome – hoje chamamos de nome social – numa carteira institucional; não era uma carteira de identidade, mas funcionou e ajudou muito a vida das pessoas trans à época. Me orgulho muito de conseguirmos, ainda nos anos 1990, essa que é uma das nossas maiores conquistas”, acrescenta Jovanna.
Sempre ativista, em 2010, ela esteve à frente da criação do Fonatrans (Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negras e Negros), para criar um espaço específico para a militância de travestis e transexuais negras e negros no Brasil, reconhecendo que as questões de raça e cor ainda eram pouco abordadas. Jovanna percebeu que era fundamental dar centralidade ao recorte racial na militância trans, já que as violências e discriminações sofridas eram agravadas pelo racismo.
A importância de lembrar das trans e travestis idosas
Apesar de todas as conquistas, Jovanna reforça que os progressos para a população trans no Brasil ainda são poucos, e que as conquistas atuais são “engodos”, que podem ser perdidos a qualquer momento. Hoje com 61 anos, ela também expressa decepção com o rumo atual do movimento trans. “Hoje não trazem a verdadeira história das pioneiras — Elza Lobão, Beatriz Senegal, Jossy Silva, Claudia Pierre France, Munique do Bavier, que foram lideradas por mim. Fundamos esse movimento tão importante, tão grandioso que impactou muitas vidas. Hoje existe um apagamento desse passado, e me entristece muito, como uma das fundadoras do movimento de travestis e trans no Brasil, saber que não temos o reconhecimento”, desabafa.
Ela aponta que o movimento se “elitizou” e esqueceu suas raízes, afastando as meninas como as que iniciaram — em situação de rua e trabalhadoras do sexo — e que mais precisam de representatividade. Este ano a Parada LGBT+ de São Paulo, marcada para o dia 22 de junho, tem como tema “Envelhecer LGBT+: Memória, Resistência e Futuro”, o que para Jovanna, é um avanço importante, ainda que tardio, para destacar as pessoas trans idosas.
Quanto à longevidade, Jovanna completa 62 anos este mês e está prestes a se aposentar — feito que enfatiza ser um desafio para a população trans no Brasil, uma vez que a maioria vive da prostituição e não consegue contribuir com a previdência. Para ela, envelhecer significa “olhar para trás e ver tudo lindo que você produziu e olhar para frente e ver o que você pode fazer mais para esse jardim ampliar”. Considera que os principais combustíveis do movimento trans são o amor e a força, que impulsionam todas as conquistas. Mesmo planejando uma rotina mais tranquila para o futuro, Jovanna afirma que continuará a lutar por um Brasil mais igual, visando garantir que “futuras gerações trans possam viver dignamente a infância, a juventude e a velhice”.
Fonte: Projeto Colabora (Por Ana Carolina Ferreira)
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