Um corpo desejado e sem lugar: o assédio contra mulheres trans e travestis

 Mostramos por que a associação entre mulheres trans e travestis ao sexo é tão comum e, ao mesmo tempo, perversa e de que modo esse caldo social produz episódios de assédio e de importunação sexual



Um evento corriqueiro como comprar pão num mercadinho de bairro escancarou a ambiguidade que o assédio a mulheres trans e travestis carrega.

A influenciadora digital e travesti Rebecca Gaia, de 24 anos, nunca mais esqueceu de uma manhã específica. Havia dois homens, cada um em uma calçada, e Rebecca, que, à época, não havia passado pela transição, caminhou ali pelo meio. “Eles me olharam daquele jeito, sabe? De cima a baixo, com desejo. Um deles apontou para mim e gritou ao outro: ‘Tá vendo isso daqui? Isso daqui tem que acabar. Tem que matar isso daqui’. Só que eles continuaram me olhando da mesma maneira. A maioria dos casos de assédio acontece assim: é um desejo reprimido.”

Episódios assim são frequentes na vida de Rebecca, antes mesmo da identificação como mulher trans. Mas ela percebe que a transição intensificou os casos. “Penso que é o preço que pago por ser eu”, diz.

A comunicadora, que já foi professora voluntária de atualidades em um cursinho popular, é didática ao explicar que os homens cis são também atingidos pela opressão imposta pelo patriarcado. Cria-se uma imagem de homens heteronormativos, e isso respinga na questão do assédio, misturado ao desejo e à repressão.

“Uma travesti e uma mina trans são vistas como homens fantasiados. Imagina assumir que está saindo com alguém assim para os amigos, numa mesa de bar? Isso quebra toda a masculinidade que esperam dele. Não à toa, o Brasil é o país que mais mata pessoas trans e travestis, principalmente negras, e, simultaneamente, é o que mais consome conteúdo pornográfico envolvendo trans e travestis.”

Uma parte desse levantamento é feito pela Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), que produz, desde 2018, o Dossiê dos Assassinatos e da Violência Contra Pessoas Trans Brasileiras. A edição de 2020 mapeou pelo menos 175 assassinatos de pessoas trans, todas travestis e mulheres transexuais, em sua maioria, negras, pobres e prostitutas.

Em números absolutos, São Paulo foi o estado que mais matou a população trans em 2020, com 29 assassinatos (um aumento de 38% dos casos em relação a 2019), seguido do Ceará, com 22 óbitos (um aumento de 100%).


Em 2021, o número será maior, adianta Keila Simpson, presidente da Antra. Já chegamos a 175 pessoas, e o ano não acabou. O dossiê será lançado no dia 29 de dezembro, e nem todas as mortes aparecerão no relatório. “Temos subnotificação a cada ano. Ficamos assustadas, porque existe uma infinidade de dados que não aparecem.”


O material é produzido a partir de notícias na mídia e relatos de coletivos LGBTQIA+. Não existem dados fornecidos por governos e, muitas vezes, uma pessoa trans morta não é identificada como trans na certidão de óbito ou no hospital ou mesmo pela polícia.


Em termos mundiais, a liderança brasileira é atestada pela Transgender Europe (TGEU), que monitora, globalmente, dados levantados por instituições trans e LGBTQIA+. Entre 1 de outubro de 2020 a 30 de setembro de 2021, foram registrados 375 assassinatos no mundo, o que representa um aumento de 7% em relação ao ano anterior.


O relatório mostra que o Brasil representa 41% de todos os casos, com 125 mortes, seguido pelo México, com 65, e pelos Estados Unidos, com 53. Quanto à correlação com a pornografia, o Brasil é o país que mais procura por vídeos de sexo envolvendo transexuais no Redtube. O levantamento foi feito pelo próprio site em 2018.


“Está no imaginário popular que travesti serve para sexo. As notícias dão sempre conta de que as travestis estão ligadas à prostituição ou a encontros sexuais fortuitos. Os homens realmente acreditam que qualquer travesti ou mulher trans está disposta a fazer sexo com ele quando ele bem desejar. Ele então aborda essa pessoa e pode chegar a ser violento se não tem consentimento. E muitas vezes a pessoa está ali, cuidando dos afazeres dela, como qualquer outra. Eu mesma, nas minhas caminhadas matinais em Salvador, sempre vejo um engraçadinho que pisca ou fala algo. Tiro de letra porque tenho uma casca grossa. Mas se não fosse isso, podia ter uma passada de mão”, diz Keila.

Fonte: Revista Marie Claire

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