Mulheres trans agredidas ganham autoconfiança e dentes em ação de ONG




Daniella de Castro, 33, estava passando por um bar quando ouviu aquele grito pejorativo que já conhecia: “Ô, traveco!”. Foi logo pedir retratação: “Eu sou uma mulher trans”. Mas a frase foi interrompida por um murro certeiro na boca. Quando acordou, no pronto-socorro, estava com o maxilar quebrado e sem os dentes.

Saiu assim mesmo do hospital em 2014, época em que ainda morava em Manaus. “Eu deixei de sorrir. Não consegui nem uma dentadura. Minha mãe comprou uma para mim, mas quando eu comia algo pastoso, ela descia junto, quando era muito duro, não quebrava”, conta.

Viajou para São Paulo, acreditando que teria tratamento melhor. “Até achei apoio psicológico, jurídico, só não tinha o atendimento odontológico”, diz. “Tentei pelo SUS, mas só fizeram arrancar meus dentes. Te deixam banguela.”

O mais indicado seria colocar um implante —tido como melhor esteticamente e para a mastigação e adaptação, principalmente no caso de quem perdeu muitos dentes. Mas implantes não são oferecidos no serviço público da capital paulista. A Secretaria Municipal de Saúde afirma ofertar próteses fixas e removíveis, opções mais baratas.

Nem isso Daniella conseguiu. “Nunca vi um paciente que tenha colocado prótese no SUS”, diz a dentista Nayara Alfonso Silva, 40, especializada em implantodontia e que atende em consultório privado no Tatuapé (zona leste).

“O serviço público funciona bem para tirar dor e extrair dentes, mas não funciona como um tratamento para conservar e restaurar os que ainda estão na boca”, diz ela, uma entre 60 dentistas voluntários que neste ano fazem parte do Apolônias do Bem, projeto da ONG Turma do Bem. 

Daniella de Castro, 33, agredida em 2014 e que teve ajuda de ONG  - Bruno Santos/ Folhapress

Nascido em 2012 para oferecer tratamento odontológico a mulheres vítimas de violência, há dois passou a atender também outro grupo vulnerável: mulheres transexuais.

O nome Apolônias é uma homenagem à personagem histórica que viveu em Alexandria, no Egito, e morreu em 249, após ser presa, espancada e ter os dentes quebrados e arrancados.

Sem sorrir, as mulheres que sofreram agressões “ficam desanimadas, não conseguem comer e só arrumam subemprego”, diz Fábio Bibancos, fundador da ONG. “É óbvio que as pessoas precisam ter dentes, e é óbvio que é o Estado quem precisa dar.”

“Agora você imagina o que deve ser para uma mulher trans?”, alguém disparou numa das reuniões do Apolônias. Foi esse o gatilho para Bibancos ir atrás delas.

Já passaram pelo Apolônias mais de mil mulheres. Em 2016, as primeiras três trans iniciaram o tratamento —Daniella foi uma. Este ano, foram selecionadas 150 mulheres agredidas, sendo 4 trans.

Até julho, Samantha Viera de Melo, 37, convivia com a falta de dentes havia exatos 18 anos, quando ela apanhou de um ex-namorado e perdeu os três dentes da frente. A pernambucana, que veio ainda nova para a capital paulista, estava descobrindo a transsexualidade. “Entrei em depressão, não queria mais viver.”

Tentou recuperar o sorriso. Mas no serviço público, “ainda tem muito preconceito, te olham torto. É difícil para nós do grupo LGBTI”, diz. Ao sentar na cadeira do dentista, “eles só arrancam tudo, acabam de tirar o que você tem, não existe tratamento”.

Nenhuma das duas conseguiria bancar um implante num consultório particular —que no caso delas custaria cerca de R$ 15 mil. Cifra impossível para Daniella, que é auxiliar de limpeza. Mais distante ainda de Samantha, que já trabalhou de doméstica, copeira, ajudante de cozinha e há um ano está desempregada.
A melhora no sorriso com o tratamento oferecido pela Apolônias do Bem ajudou Daniella a arrumar um emprego. “Dão mais credibilidade quando veem que você está com os dentes perfeitos. A boca é o seu cartão postal.”
Ela também concluiu o ensino médio. “Nunca imaginei que ia conseguir um trabalho CLT e terminar os estudos.” Agora, claro, faz questão de mostrar do inciso ao molar.

Samantha diz que “tinha vontade de sorrir, mas tinha medo, vergonha”. Evitava abrir a boca quando conhecia alguém. “As pessoas achavam que eu era metida”.

Um mês de tratamento fez diferença. Já falam: “mulher, você está diferente”. Ela voltou a estudar e, em 1º de agosto, entrou com pedido de mudança dos documentos para contemplar sua identidade de gênero —vai ter agora o nome social. Já estou com a aparência melhor, aí cria autoconfiança, você começa a ser mais você mesma, diz ela. Depois que arrumar meus dentes, vou atrás de um trabalho.”
A Secretaria Municipal da Saúde diz que quando uma mulher vítima de agressão precisa de tratamento odontológico de urgência, ela “é orientada a participar da próxima triagem da UBS (Unidade Básica de Saúde), onde poderá fazer extrações, restaurações e tratamento periodontal”.
Se precisar de tratamento de canal, prótese, cirurgia complexa ou cuidado periodontal prolongado, aí “será encaminhada para um dos 30 Centro de Especialidade Odontológica” na cidade.
Hoje são 26.406 equipes de saúde bucal para atender 5.038 municípios brasileiros, segundo o Ministério da Saúde. E, entre 2017 e 2018, foi anunciado um investimento de R$ 344 milhões para ampliar o acesso aos serviços, ainda segundo a pasta.
Fonte: Folha de São Paulo

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