Mulher trans e pró-reitora adjunta na Rural, Joyce Alves avalia pioneirismo e representatividade: 'Quebrar ciclos'

Pós-doutora, professora paulista cita educação básica pouco inclusiva como grande desafio para a chegada desses estudantes ao ensino superior



Filha de um cearense e de uma piauiense que migraram para São Paulo no grande fluxo de nordestinos que lá chegaram nos anos 1970 em busca de trabalho, Joyce Alves da Silva aprendeu cedo a não se assustar com o tamanho da estrada, mesmo que se deparasse com curvas sinuosas. Com um passo de cada vez — e às vezes dando seus pulos —, ela terminou duas graduações (Letras e Pedagogia) antes dos 25 anos.

Fez mestrado na USP, deu aula na Universidade Federal do Maranhão, concluiu doutorado e pós-doutorado, até que, em 2012, se tornou professora da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Hoje, com mais de 40 anos, ela é conhecida para além dos títulos acadêmicos. É pró-reitora adjunta de assuntos estudantis e a primeira mulher trans a ocupar, em 2021, um cargo institucional numa universidade pública, onde já fazia parte do corpo docente.

Assumir o desafio foi concomitante ao seu processo de autodescoberta. No mesmo período de dedicação à nova trajetória, ela, que na época se identificava como um homem gay, viveu seu processo de transição de gênero e, aos poucos, foi se identificando com o feminino.

Como foi viver tudo isso no mesmo período?

Joyce: Foi em 2018 que isso (a possibilidade de ser transgênero) começou a aparecer nos meus pensamentos. Por um tempo, as pessoas me confundiam com mulher e isso me aborrecia. Eu estava em processo de aceitação. Veio a pandemia, em 2020, e meu cabelo foi crescendo. Coloquei tranças; de início, masculinas, mas a cada vez que eu ia trocando, elas ficavam mais femininas. Então, minha roupa foi mudando, fui me feminilizando... Comecei a me referir no feminino em 2021, mas o nome foi a questão de maior resistência à ruptura. Até que, através das redes sociais, eu passei a me identificar só no feminino e me declarei para todos. Passei a me chamar Joyce em abril de 2023. Olhando para trás, penso que tratei com delicadeza, mas foi difícil.


Teve dificuldades no meio acadêmico, no familiar?

Joyce: No trabalho, foi tranquilo. O reitor (Roberto de Souza Rodrigues) nunca errou meu pronome. É danado! Com minha mãe, de 70 anos, tenho que ter uma paciência maior. E com meu pai, ano passado, tive uma conversa emocionante, chorei. Ele falou que me ama do jeito que eu sou. Depois de alguns meses, ele faleceu.


Ser pró-reitora adjunta de assuntos estudantis te exige mais do que títulos, certo?

Joyce: Sim. Atendo estudantes com diversas vulnerabilidades: socioeconômica, em relação à questão das violências, de racismo, de transfobia. Tenho essa sensibilidade porque são questões pelas quais já passei, passo e posso passar.

Quando percebeu sua representatividade neste posto universitário?

Joyce: De início, fiquei insegura porque a gente não é projetada para estar nesses lugares, pensei que não ia dar conta. Acabei aceitando porque me lembraram da importância de quebrar o ciclo dos mesmos tipos de pessoas sempre nesses espaços.

Ocupar este cargo te isenta de sofrer discriminação?

Joyce: Não. Já sofri transfobia depois de entrar na Rural. Antes de ser pró-reitora, sou uma mulher trans e não estou imune. Tenho mais visibilidade, e meu teto é mais de vidro do que o de outras pessoas. Foi virtual, e não pessoalmente. Respondi citando a lei e avisei que, se continuasse, denunciaria ao Comitê de Ética, à Decradi (Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância). Quando começou a movimentação para as cotas para pessoas trans, sofri muita ameaça de perfis fakes. Diziam que eu tinha que ir para a prostituição e que a universidade não era o meu lugar. Foi tão pesado que deletei.

Quais foram as principais conquistas dos últimos anos? E o que falta conquistar?

Joyce: Também estou no cargo de Coordenadora da Comissão Permanente da Política Institucional pela Diversidade, Gênero, Etnia, Raça e Inclusão (CPid), que propõe pautas identitárias como o banheiro neutro (metade dos prédios da Rural tem ao menos um), registro de nome social tanto para estudantes quanto para quem venha prestar concurso, protocolos de denúncia contra violência e assédio, cotas para graduação e pós-graduação. A Rural foi a 17ª universidade do país a regulamentar as cotas para estudantes trans e travestis de graduação e de pós. Podemos dizer que esse movimento no Rio começou com a UFRRJ, em 2023. Um dos próximos passos é criar políticas de permanência.

Já houve aproveitamento das vagas?

Joyce: As cotas estão em vigor para a pós há um ano, mas nenhuma pessoa trans sequer se candidatou. E a Rural tem mais de 20 cursos de pós. Infelizmente, o gargalo está antes até do ensino superior. Segundo dados da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), 70%, das pessoas trans não terminam a educação básica. Segundo a Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes), apenas 0,02% dessas pessoas estão em universidades públicas.

De que maneira esse cenário pode melhorar?

Joyce: Uma educação básica inclusiva ajudaria. Os dados dizem que as pessoas trans se evadem da escola, mas não é exatamente isso que ocorre. A escola dá um jeito de expulsá-las. Não de maneira formal, mas com outros mecanismos: o nome social não é respeitado, o uso do banheiro também não. A incidência de infecção urinária nas pessoas trans é 20% maior do que nas pessoas cis, justamente porque elas ficam evitando ir ao banheiro para não serem violentadas nem constrangidas.

Qual é o papel da universidade em meio ao crescimento do conservadorismo?

Joyce: É ainda um espaço de resistência. O projeto de poder quer estrangular universidades públicas, diminuindo cada vez mais os recursos. De 2015 para cá, as verbas destinadas às universidades só têm diminuído. Passamos por maus bocados na época do Bolsonaro. Hoje, melhorou o diálogo. Mas as verbas continuam escassas. E é um problema não só da Rural.


UFRRJ: pessoas trans e travestir terão reserva de 3% das vagas supranumerárias em todos os cursos de graduação e de pós, e em qualquer turno. A medida começará a valer em 2025. As vagas dessa seleção não vão interferir nas de ampla concorrência ou de outras políticas de cotas. A classificação será feita com base na nota do Enem, mas não pelo Sistema de Seleção Unificado (Sisu). Haverá um edital específico (como é feito no caso das vagas remanescentes). Além da autodeclaração, será feita análise documental, que avaliará, por exemplo, se o/a postulante possui RG com nome social.

UFF: reservará, a partir de 2025, 2% das vagas para pessoas travestis, transexuais e transgêneras — transmasculinas, transfemininas e/ou trans não binárias —, que tenham cursado o ensino médio integralmente em escola pública, no âmbito da política institucional de ações afirmativas para ingresso nos cursos de graduação presencial, além de uma vaga extra para cada curso de pós-graduação. Estima-se que cerca de 360 pessoas possam ser beneficiadas. Em setembro, a universidade fluminense aprovou, simultaneamente, cotas trans para graduação e pós — também em setembro, a Rural aprovou as cotas para a graduação; para a pós, já valem desde 2023.

Unirio: no dia 11, a universidade abriu consulta pública sobre a minuta de resolução que institui ação afirmativa de reserva de vagas nos cursos presenciais de graduação. A princípio, a proposta consideraria estudantes que cursaram o ensino médio em escolas públicas, além de renda familiar e autodeclaração. 


Fonte: O Globo

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