'Aquendar': com marca de lingerie, empresária quer prevenir problemas urinários de mulheres trans

 Prática de ocultar genitais costuma limitar as idas ao banheiro e pode causar quadros graves de rins e bexiga


Todo dia, antes de sair de casa, a modelo e atriz carioca Mar Moraes, de 37 anos, cumpria uma rotina ao se arrumar:

— Usava fita adesiva ou duas, três calcinhas juntas, para apertar bem e “aquendar”. Machucava, além de ser um desconforto imenso. E não dava para usar o banheiro, era dolorido e trabalhoso tirar e depois ter que fazer o truque todo de novo. O jeito era segurar a vontade até voltar para casa. Mesmo sabendo que isso fazia mal — conta.

“Aquendar” é o termo usado na comunidade LGBTQIAP+, em especial por mulheres trans e travestis, para esconder a genitália. Por estética, e também por segurança no país que mais mata população trans no mundo, “aquendar a neca”, na expressão mais usual, é prática recorrente em uma comunidade que tenta também se esconder do preconceito. Mas pode virar problema sério de saúde.


É comum que se usem fita adesiva e até colas de alta resistência para puxar e prender pênis e testículos para trás. O risco vai além de machucar: para manter o volume oculto e diminuir a dor na hora de tirar, muitas mulheres trans evitam beber água e seguram a ida ao banheiro, o que a longo prazo pode provocar casos sérios de infecção urinária e até insuficiência renal.

— Postergação miccional é a maior causa de infecção urinária — explica Ubirajara Barroso Jr., diretor da Escola Superior de Urologia da Sociedade Brasileira de Urologia. — Há bactérias que vêm do reto, e do intestino, como a Escherichia coli, que podem entrar na bexiga. E o principal mecanismo de defesa contra elas é justamente o esvaziamento da bexiga. A micção regular e completa faz com que essa bactéria seja literalmente lavada e expulsa do trato urinário. Quem urina menos permite que as bactérias fiquem na bexiga por mais tempo e possam causar infecção.

Faltam pesquisas

Não há dados oficiais sobre o alcance dessa questão de saúde entre mulheres trans no país. Mas Barroso Jr. cita uma pesquisa realizada em 2016 com 28 mil mulheres trans nos Estados Unidos que mostrou que 60% delas revelaram evitar o banheiro. E um terço, acrescenta, inibia a ingestão de líquidos para não ter vontade de urinar.

— A literatura médica ainda é escassa nessa área, e faltam estudos comparativos de risco. Mas sabemos que quando a bexiga fica muito repleta, ao retardar a ida ao banheiro, pode haver ainda refluxo da urina para o rim, aumentando a chance também de infecção renal. E isso pode gerar cicatrizes renais irreversíveis — completa o especialista.

No caso da população trans, ressalta, além de evitar o banheiro, muitas evitam também a ida ao hospital, o que pode agravar o quadro. Não são todas as unidades, admite Barroso Jr., com preparo e respeito necessários para o atendimento a esse público.

O Ministério da Saúde diz não possuir recortes de casos ou atendimentos de doenças urinárias e renais para a comunidade trans, mas afirma que constituiu um grupo de trabalho específico para elaborar uma linha de cuidado especializado na saúde dessa população.

Silvana Bento, de 47 anos, se deparou com o problema na prática: como técnica de hemoterapia em hospitais de São Paulo, ela começou a ficar impressionada com a quantidade de pacientes, mulheres trans, que chegavam com indicação para hemodiálise e até transplante de rins.

— Era sempre o mesmo perfil, e comecei a investigar e conversar com médicos, enfermeiras, as próprias pacientes. No início, achei que seria mais pela discriminação de que elas não podiam usar o banheiro feminino. Mas não era só isso. Quando elas me explicaram como faziam para ocultar o volume na região da virilha e questionei como faziam para usar o banheiro, a resposta foi: “Não usamos.” — lembra Silvana Bento.

Até que, um dia, ela perdeu uma paciente que estava na fila de transplante de rins.

— Ela era jovem, estava internada, morreu na minha frente. Foi a gota d'água. E, mesmo sem saber costurar, resolvi criar uma marca de peças íntimas e moda praia para esse público que precisa ficar com a virilha sem volume — conta.

Impactada com a morte da paciente, Silvana improvisou o protótipo da primeira peça com um pedaço de tule da saia de balé da filha, cortado em forma de funil. Depois, claro, foi aperfeiçoando o modelo da calcinha, com consultoria ali mesmo, nos hospitais, com as pacientes.

O nome da marca, Trucss, vem do “truque” de “aquendar”. Mas não foi fácil, no começo, lidar com a resistência das próprias vizinhas na quebrada da Zona Leste da capital paulista, onde Silvana, mãe de quatro filhos, mora.

— Por não saber costurar, busquei costureiras perto de casa, mas muitas se recusavam quando descobriam para que eram as peças. Para ter os primeiros produtos, cheguei a mentir para algumas dizendo que eram artigos para “pets” — lembra.

Mirando o SUS

As peças têm elástico na cintura e um bolsinho para acomodar a genitália, em 16 variações de tamanhos, e podem ser fechadas e abertas com um fechinho, sem necessidade de cola nem fita adesiva.

— O propósito é a saúde dessas meninas. Não quero que outras morram devido a essa prática. Imagina uma menina que começa uma transição aos 17 anos e aos 30 continua “aquendando”? Claro que o trato urinário e os rins serão afetados — afirma.

No mês passado, uma campanha publicitária da marca, criada pela agência Africa Creative, ganhou dois prêmios no Festival de Criatividade de Cannes. O vídeo ressalta como, ao deixar o volume visível na virilha, mulheres trans correm o risco de serem atacadas no Brasil. E, com o órgão genital preso ao corpo, o risco é de morrer de problemas renais.

A Trucss tem hoje mais de 20 modelos entre moda praia e moda íntima, e uma clientela em expansão, que inclui a artista Linn da Quebrada — ela chegou a levar mais de 50 peças da Trucss ao confinamento do “BBB 22”.

Para alavancar o empreendimento, Silvana participou de programas de aceleração de negócios, como o Vai Tec, da prefeitura de São Paulo. Chegou a abrir uma loja física, mas a empreitada não resistiu à pandemia. E tem ambição de revender as peças em lojas de departamento, com funcionárias trans à frente da promoção.

Por enquanto, as vendas acontecem principalmente pelo site e pelas redes sociais da marca. E, embora esteja totalmente dedicada à grife e já não atue como profissional de saúde, Silvana almeja levar suas peças ao Sistema Único de Saúde (SUS).

— Quero que nossas modelagens possam ser entregues gratuitamente a meninas trans sem condições de comprá-las. Criamos uma ideia legislativa que precisa chegar a 20 mil assinaturas para ser debatida no Senado. Temos pouco mais de 18 mil — diz ela.

A proposta está neste link. As clientes, anônimas e famosas, ajudam na divulgação:

— Conheci as peças nas redes sociais e achei interessante uma mulher cis ter essa preocupação. Normalmente, só quem vive isso é que sabe da coisa. Ela teve essa empatia — diz a modelo carioca Mar Moraes.

A modelo e atriz carioca Mar Moraes conheceu as peças da Trucss nas redes sociais — Foto: Everton Guimarães/ Divulgação

A modelo e atriz carioca Mar Moraes conheceu as peças da Trucss nas redes sociais — Foto: Everton Guimarães/ Divulgação

Silvana costuma dizer que não é LGBTQIAP+, mas que “pegou a dor” da comunidade trans para ela. Mais ainda recentemente, quando um dos filhos assumiu a transição de gênero. E virou sócio na marca, conta ela:

— O próximo passo da Trucss vai ser patentear peças para homens trans.

Fonte: O Globo

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