Lei municipal que proíbe banheiros unissex é discriminatória e ilegal, diz TJ-SP

 


É atentatório ao Estado Democrático de Direito qualquer tipo de discriminação, inclusive pela orientação sexual ou identidade de gênero das pessoas.

Assim entendeu o Órgão Especial do Tribunal de Justiça de São Paulo ao julgar inconstitucional uma lei de São Bernardo do Campo, que proibia a instalação de banheiros unissex ou compartilhados em estabelecimentos ou espaços públicos e privados no município.

Ao propor a ação, a Procuradoria-Geral de Justiça afirmou que a norma seria incompatível com preceitos da Constituição Federal, implicando ofensa aos princípios da dignidade da pessoa humana e à liberdade de orientação de gênero. A PGJ também disse que o Supremo Tribunal Federal vem atuando na proteção das minorias que sofrem discriminação, o que inclui as pessoas transexuais.

De acordo com o relator, desembargador Vianna Cotrim, a Constituição Federal consagrou objetivos fundamentais visando à construção de uma sociedade livre, justa e solidária, estabelecendo expressamente em seu texto que não há espaço para qualquer tipo de discriminação, seja de origem, raça, sexo, cor, idade ou outras formas de preconceito.

"A Carta Constitucional consagra a dignidade da pessoa humana como princípio fundamental do Estado Democrático de Direito (artigo 1º, inciso III), e positiva, expressamente, o reconhecimento dos direitos e garantias fundamentais no artigo 5º, caput, e incisos, dentre eles o direito à vida e os direitos da personalidade. Qualquer tratamento jurídico discriminatório sem justificativa constitucional razoável e proporcional importa em limitação à liberdade do indivíduo, implicando, assim, violação à principiologia estabelecida na Magna Carta", disse.

O relator observou que o STF já reconheceu que a Constituição brasileira opera um intencional silêncio em relação à sexualidade dos indivíduos, "perfilhando o entendimento de que, segundo a norma geral negativa de Kelsen, 'tudo que não estiver juridicamente proibido, ou obrigado, está juridicamente permitido'". 

"Raciocínio que permitiu à Suprema Corte, atenta à diversidade de grupos com interesses, ideologias e projetos diferentes em nossa sociedade, reconhecer a união homoafetiva como instituto jurídico, sendo que um dos argumentos que embasou a decisão foi a proibição da discriminação, seja no plano da dicotomia homem/mulher (gênero), seja no plano da orientação sexual de cada qual deles (ADI 4.277)."

Segundo o magistrado, ao usar a expressão "sexo", tal como fez a Constituição Federal, deve-se levar em conta não apenas a natureza física, mas também o gênero. Ele disse que a pluralidade dos seres humanos vai além da visão cisgênero, binária e heterossexual, e o autorreconhecimento e a autodeterminação sexual e identitária de gênero são um direito da personalidade e expressão máxima da liberdade, privacidade e dignidade da pessoa humana garantidos pela Constituição.

"Enquanto a definição de masculino e feminino advém do conceito biológico, intrinsicamente ligado à presença ou ausência do cromossomo Y no cariótipo, na identidade de gênero o que é concebido como homem, mulher, ou outros, tem relação com a auto percepção e a forma como a pessoa se expressa socialmente, podendo ou não guardar relação de compatibilidade com a condição física de nascimento", afirmou.

Conforme o relator, o conceito de "sexo" estabelecido na Constituição Federal deve abranger, "seja por integração dos significados, seja por inexistir exclusão expressa", a identidade de gênero, de modo que, se o texto constitucional não admite qualquer discriminação com base no sexo do indivíduo, não se pode permitir, também, qualquer segregação com base no gênero.

"O Supremo Tribunal Federal já reconheceu que a identidade de gênero e a orientação sexual constituem dimensões essenciais da dignidade, da personalidade, da autonomia, da privacidade e da liberdade (ADPF 527), tendo a C. Corte se pronunciado no sentido de repudiar qualquer espécie de discriminação envolvendo identidade de gênero para que direitos possam ser exercidos sem comprometer a liberdade e personalidade de cada indivíduo", completou Cotrim.

Lei de São Bernardo do Campo
Neste contexto, o desembargador disse que a lei impugnada implica restrição à liberdade de escolha de parcela da população que não se identifica exclusivamente com o gênero feminino ou com o masculino, configurando conduta discriminatória vedada pela Constituição Federal.

"Isto porque, a proibição de que estabelecimentos públicos e privados criem em seus espaços banheiros compartilháveis obriga pessoas transgêneros, queers, intersexuais, entre outros, a se enquadrarem em conceitos de masculino ou feminino com os quais não se identificam, dando azo à inegável constrangimento, malferindo, com isso, o princípio da dignidade da pessoa humana", explicou.

Na visão de Cotrim, não se pode obrigar qualquer ser humano a se reconhecer de forma diversa daquela como ele mesmo se enxerga, sob pena de violação das garantias e liberdades constitucionais adotadas pelo Estado Democrático de Direito Brasileiro, dentre as quais a liberdade, o bem-estar, a igualdade e a dignidade.

"Descabe potencializar o inaceitável estranhamento relativo a situações divergentes do padrão imposto pela sociedade para marginalizar cidadãos, negando-lhes o exercício de direitos fundamentais. A tutela estatal deve levar em conta a complexidade ínsita à psique humana, presente a pluralidade dos aspectos genésicos conformadores da consciência. É inaceitável, no Estado Democrático de Direito, inviabilizar a alguém a escolha do caminho a ser percorrido, obstando-lhe o protagonismo, pleno e feliz, da própria jornada."

Para o relator, a criação de banheiros unissex ou compartilhados não impede o estabelecimento de manter banheiros destinados exclusivamente para homens e mulheres. "Demais disso, ao contrário do que alegou a Câmara Municipal, não há estudos ou dados concretos que demonstrem que a criação de banheiros compartilháveis aumente os índices de qualquer tipo de violência", acrescentou.

Além disso, o magistrado disse que, por se caracterizar como direito fundamental e, ao mesmo tempo, da personalidade, os direitos relativos à sexualidade se revestem com a prerrogativa de não discriminação, sendo imprescindível criar condições para que a diversidade prevaleça em relação ao Estado e à sociedade, assegurando a todos os indivíduos instrumentos inclusivos perante suas singularidades.

"Por fim, há de se considerar que a norma vergastada afronta os princípios da livre iniciativa e do livre exercício da atividade econômica, insculpidos nos artigos 1º, inciso IV, e 170, parágrafo único, da Constituição Federal, ao impor, sem qualquer justificativa razoável ou interesse local, um padrão estrutural aos estabelecimentos comerciais do município, obstaculizando, com isso, a ampla captação de clientes", finalizou o relator. A decisão foi por unanimidade.

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Processo 2110632-93.2022.8.26.0000

Fonte: ConJur

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