Essa coisa toda de defesa dos direitos de crianças e adolescentes causa tantas surpresas…
Algumas terríveis de ver gente da chamada Rede de Garantia de Direitos sendo contra todos os direitos de crianças ou até violadores e violadoras…
Ah… outras vezes lá vem a surpresota maravillosa!!!! E Fernanda foi esse pipocamento de contenturas.
Era um tempo que me dispunha a ser conselheira estadual da criança… daqueles exercícios que só se entrava com expectativa e, a partir daí, um labor trabalhento, paciencioso, perigoso, corda bamba… uma permanente mescla entre a racionalidade, o controle emocional e a superação psíquica entre as peleas de garantir e violar direitos.
E lá fui eu a Três Lagoas para a Conferência Municipal da Criança e do Adolescente e, eis que chegando vejo aquela figura elegante, cabelos de graúna, lisos como a música Índia de Cascatinha y Inhana. Os olhos eram quase como desenho japonês… saltavam em lindeza, tamanho e negresa. Rosto longilíneo parecia compor um quadro. Veio em minha direção:
Índia, seus cabelos nos ombros caídos
Negros como a noite que não tem luar
Seus lábios de rosa para mim sorrindo
E a doce meiguice deste seu olhar
Índia da pele morena
Sua boca pequena eu quero beijar
-Cris me falou que você vinha.
-Ain, Cris? Qual?
-Em comum temos Cris Sthepphanny…
-Ai que bom que estamos entre parceiras aqui. Como é o pessoal que está na Conferência?
-Bastante Igreja, bastante assistentes sociais, pouca gente da saúde, um ou dois policiais, quase todo mundo da promoção social, os conselheiros tutelares e municipais… e eu!!!!!
-A educação não veio?
-Dizem que tem aulas…
Rimos muito de nervoso. Mesmo sendo o nosso primeiro encontro estávamos falando a mesma linguagem e o sabíamos. As Conferências dos DDHHCCAA geralmente são composta por muitos conservadores e conservadoras. Colocam as crianças distantes do que é a vida real. E, quando as crianças participam geralmente é para fazer a abertura cultural, tocam algum instrumento, cantam alguma música distante do mundo verdadeiro ou dançam como se não houvesse o funk no mundo… Depois são dispensadas e a Conferência sobre os direitos da infância passam a ser debatidos e deliberados por adultos…
Iniciamos a Conferência Municipal, aburrida, cheia de racionalidades e fizemos cumprir o Regimento Interno, terminamos tudo a tempo, elegemos as prioridades municipais, estaduais e nacionais e tiramos a delegação para a Conferência Estadual. Ufaaaaaaa! Missão cumprida.
E lá veio a Fernanda para a Conferência Estadual como Delegada. Uma articulação fodástica com delegadas e delegados municipais, uma auto apresentação incrível dela falando do que é defender direitos de crianças e adolescentes e foi eleita pela sociedade civil com a maior votação de todas. Foi daqueles feitos que me davam orgasmos cidadânicos, tipo assistente social que vê o mundo dando certo. Uma travesti ali, em pé de igualdade… pero… nem tão igual.
Quando fizemos o Seminário da Juventude, dois dias antes da abertura da Conferência Estadual, Fer veio por conta própria pois em Três Lagoas não escolheram ela para ser a adulta que acompanhava a adolescente que vinha. Fiquei toda feliz quando vi ela chegando no Hotel Concord e foi uma festa danada do povo do IBISS. Já tínhamos a Elô na equipe e não havia estranhamento para nós que uma travesti estivesse no meio da criançada e adolescentes. Então eram duas e estava tudo bem. Tivemos duas meninas inquietas que precisavam perguntar e, durante o almoço, colocamos na mesma mesa e foi tudo bem… TUDOOOOO
Eis que inicia a Conferência o menino de Campo Grande, na abertura fala do que foi o Seminário da Juventude e cita que um dos maiores feitos do evento é que puderam conviver com as diversidades: negros, gays, indígenas, travestis, com deficiência, em medidas socioeducativas… E as duas, Elô e Fernanda no meio da gurizada. Foi quando uma Delegada faz a proposta:
-Agora que a Conferência já vai começar eu sugiro que o encaminhamento é que cada criança ou adolescente que participou do Seminário da Juventude fique com suas delegações municipais.
O menino que havia feito o relato contrapõe:
-Eu sugiro que nós adolescentes fiquemos todos juntos. A gente quer participar todos juntos.
Ao final, ficou decidido que crianças e adolescentes ficariam onde quisessem. Ok, aprovado por unanimidade. Veio o intervalo e a merenda. Movimentação geral das delegações adultas. Ao final, a esmagadora maioria de adolescentes foi sentar junto com os demais participantes por município. E Fer, junto com Elô comentando:
-Se ficamos junto com as meninas, somos homens e podemos cometer estupro. Se ficamos junto com os meninos somos gay e também podemos cometer estupro.
Uma pedra foi tacada e entrou direto no meu espírito de cidadania. Às vezes o arame farpado está na próxima esquina de participação. De onde virá a lança certeira contra o peito aberto? E como recobrar a calma e fazer a fala tão bem preparada sobre os CMDCAs e Conselhos Tutelares? Senti que a bochechas pesavam e as pálpebras caíam sobre meus olhos. As três, quatro pessoas em volta, todas calaram e a Elô, percebendo que parecia tudo indo ao chão:
-Gente, nós temos que fazer o que viemos fazer aqui. Até não me mandarem embora eu vou ficar e eles vão ter que ficar me vendo…
Fizemos o evento, marcamos X no realizada a Conferência. As movimentações e inquietudes foram tantas que quando a Fer se candidatou pela Associação das Travestis de Mato Grosso do Sul (ATMS) para ser Delegada à Conferência Nacional, novamente teve o feito de ser a mais votada na sociedade civil. É a contradição explícita que faz as pessoas tomarem lado. Acredito até que algumas votam por protesto percebendo a bestagem de outras…
Como conversei com o Silvio uma vez:
-Quando a gente diz o que é e não se afasta do mostrar-se o que pensa e sua própria identidade, muita gente se assusta, mas também provoca que os discriminadores mudem suas atitudes.
Fer e Elô fizeram certinho: andaram pelo meio das pessoas, Fernanda participou dos debates com muita qualidade, tiraram foto com as gentes, cumprimentaram as adultas, almoçaram em mesas com adolescentes do Seminário… e lá fomos nós… Conferência Nacional.
Fui dois dias antes prá discussão de relatoria. Trampo pesado, racional, cheio de pipocos prá resolver. Quando cheguei no hotel, nossa delegação não havia chegado. Perguntei qual era o meu quarto e me perguntaram se eu podia ficar com uma representante do povo cigano.
– Claro que posso! Algum problema para perguntar isso?
-Nenhum! É que ela não é do seu estado.
-Super sem problema!
Quando cheguei ao quarto a mulher do povo cigano não estava e ela ocupava quase todo o aposento com tantas coisas bonitas que trouxe. Fiquei curiosando de longe, coloquei minha mala no canto que sobrou e fiquei aguardando que ela chegasse. Ia pedir que eu pudesse utilizar uma das cadeiras. Eu sou a pessoa mais adaptável do mundo com companheiros de quarto. Já vivi muitas possibilidades e essa era mais uma de conviver com aprendizagens. Fiquei empolgada. Não precisava de quase nada pois a programação era muito longa.
Quando acordei do soninho pós almoço o quarto era fumaça total. Não havia nenhum espaço para respirar. Devo ter acordado exatamente por isso. Ela fumava com todo o quarto fechado.
-Boa tarde! Eu sou Estela. Vou abrir a janela!
-Nãooooo, eu estou resfriada e se o vento gelado entrar… posso piorar.
-Mas aqui é que vai piorar… mulher, você fuma no quarto?
-Eu fumo! Você não?
-Vou dar uma saída prá encontrar o povo do meu estado.
Escovei dente e mesmo dentro do banheiro o cigarro entrava como se estivesse ali. Desci e no saguão perguntei na recepção se a delegação havia chegado. Sim, havia.
-Podia verificar se tem uma vaga junto com alguém?
-Minha Senhora, tem uma vaga, mas a Sra. tem que avaliar bem. Tem uma situação diferente.
-Com quem?
-A outra pessoa é Fernanda Venturini. A Sra. conhece?
-Sim, é minha amiga. Vou ficar com ela.
-Certeza?
-Super certeza!
Subi ao quarto e quando entrei tapei o nariz e a boca. Não era possível respirar. Peguei as coisas do banheiro fechei a mala e disse:
-Olha, a minha delegação chegou e vou ficar com eles.
-Que foi? Não gosta de ciganas?
-Longe disso! Espero que a gente converse bastante durante a Conferência. Mas é melhor ficar com os meus.
-Não é fácil ficar com cigana. Ninguém quer ficar. Do meu estado ninguém quis.
-Olha, não tem nada a ver com ser cigana. Quero mesmo é ficar com o pessoal de Ms.
Fui para o quarto que já estava Fernanda e contei o acontecido. Daí a pouco chegaram os jovens e algumas delegadas.
-Como foi a viagem?
-Nos colocaram no kinder-ovo.
-Como assim?
-Uma van dura, com todos os lugares ocupados… Foram quase 17 horas e a gente não pode pestanejar… Todo mundo cansado e quebrado…
– Nenhum incidente, então… que bom!
– Tirando que tinha em pessoal que não mudava de lugar prá não ficar perto de mim…
-Num querdito! Bem, mas agora a gente fica entre quem gosta de ficar junto com todo mundo….
E, saímos em bando para o Centro de Convenções… alguns querendo dormir, outros acesos pela ansiedade do evento, outros querendo olhar como era Brasília… E lá vamos nós. E, até a entrada do evento tudo era cansaço e alegria. Já na entrada, indo para o credenciamento vi que minha ex-colega de quarto gesticulava e falava alto. Pensei: lá vem problemas com falta de documento das representações ciganas… vai ser isso!
Índia, a sua imagem
Sempre comigo vai
Dentro do meu coração
Flor do meu Paraguai
– Oi, gente! Posso ajudar?
-Ah, é essa mesmo! Ela estava comigo no quarto e foi na recepção pedir prá trocar. Tenho certeza que é porque eu sou cigana. Vai ver que imaginou que eu ia roubar ela porque é assim que o povo pensa de nós!
-Hum!!!!!!!???????
-Nossa Delegada do Rio de Janeiro está dizendo que foi discriminada porque você não aceitou dividir o quarto com ela.
-Eu? Discriminei povo cigano?
-Isso mesmo! Saiu do quarto feito bala! Nem olhava prá minha cara!
Quando olhei em volta tinha pelo menos metade da delegação de MS e algumas pessoas do Centro-Oeste que eram os que mais me conheciam. Quando Márcio foi chegando falei baixo no ouvido dele:
-Ela fuma dentro do quarto com janelas e portas fechadas… Quase morri asfixiada… difícil.
E chegou Fernanda Venturini e pegou na minha mão:
-A Estela discriminou? Tem certeza? Será que tem alguma outra coisa que possa ter acontecido?
E o Márcio:
-Tipo ela quer ficar com a delegação de MS ou então a Sra. fuma? Eu, por exemplo, fumo e todas as vezes que estou com a Estela tenho que me afastar. Ela passa mal com cigarro…
E fiquei de mãos dadas com minha amiga Fer e meu amigo Márcio. E a delegação ali do lado do tipo: estamos aqui. Aí chegou Tiana do Rio de Janeiro, compa de muitas batalhas e guerras…
-Companheira, você vai formalizar uma denúncia contra a Estela? Sim, ela é branquela, heterossexual, estudada, bonita e daí?
Tiana colocou-se fisicamente ao lado da mulher cigana e sem nenhum sintoma de reproche. E Fer disse:
-Mulher, presta atenção! Você vai denunciar a Estela e nós, parte da Delegação vamos ficar aqui até que tudo seja apurado.
-Então ela passa mal com cigarro? Eu não sabia…
-Todo mundo passa mal, até nós que fumamos, falou o Márcio.
– Foi maus…
Márcio ficou com ela junto com Tiana e eu fui de mãos dadas com a Fer e o jovem menino. Sim, chorei de medo, nervoso, insegurança… e pude chorar porque várias pessoas ficaram ao meu lado e eu não precisei de novo reafirmar que luto todos os dias para não discriminar ninguém.
Quando eu for embora para bem distante
E chegar a hora de dizer adeus
Fica nos meus braços do mais um instante
Deixa os meus lábios se unirem aos seus
Quando Fernanda Venturini se encantou fiz um cozido de carne com mandioca e coloquei bastante cheiro verde. Nas vezes que conseguimos almoçar sossegadas entre militância e atendimentos de doença ríamos de nosso percurso de amizade. Às vezes vinha à noite de Três Pocinhas e eu a pegava na rodoviária só pelo simples prazer de conversamos no caminho, pois ambas tínhamos que dormir para estar a postos no outro dia bem cedo. E ir levá-la nos seus compromissos matinais era mais minutos e conversa e silêncios…
Nunca tivemos muito tempo para desfrutarmos da amizade, mas tudo o que tivemos, minutos aqui e ali eram sempre intensos de dedicação e aprendizado. Acho que é disso que o mundo chama de amigas, num é?
Estela Márcia Rondina Scandola
60 anos de direito aos afetos e dengos
Fonte: Vida Mulherida
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