Travestis negras: incendiárias intelectuais

 por Ayra Dias

São escassas as oportunidades de acesso para travestis e transexuais negras às universidades brasileiras, e quando acontece este é marcado por uma série de tentativas de expulsão que já conhecemos e reconhecemos, como a invalidação de nossos potenciais intelectuais, recusa ao uso de nome social e relações violentas em virtude do ambiente marcado pela transfobia e racismo estrutural. As universidades públicas brasileiras seguem com suas portas fechadas para nós, porém, os 0,02% das travestis e transexuais que conseguiram adentrar este espaço configura-se enquanto materialização de um sonho de todas aquelas que construíram e constroem o movimento social organizado da categoria.

Vale ressaltar, no entanto, que nossa intelectualidade não está presa às amarras positivistas dos ambientes acadêmicos. No movimento social, temos construído nossas epistemologias travestis, que questionam o Statuo Quo e servem como modelo analítico para aqueles que, assim como nós, atuam através das trincheiras da ciência.

Neste sentido, a Associação Nacional de Travestis e Transsexuais — ANTRA – desenvolve um papel fundamental, pois ao realizar estudos acerca das pautas e demandas da população trans, tem contribuído diretamente para a criação e elaboração de políticas públicas.

Reconhecendo e reivindicando o potencial intelectual de todas aquelas que tiveram seus direitos cerceados, travestis negras têm desenvolvido trabalhos não só no campo das políticas públicas, mas também da literatura, firmando o compromisso de demarcar nossas existências na história. Narrativas contadas em primeira pessoa ajudam a compreender como se desenhou este país pautado em valores e normas que pactuam com a exclusão de pessoas trans dos ambientes familiares, escolares e dos postos de trabalho.

Jovanna Cardoso, popularmente conhecida como Jovanna Baby, e que atualmente é PresidenTRA do Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negras e Negros — FONATRANS – lançou no mês de agosto deste ano o livro Bajubá Odara, que faz um resgate histórico, detalhado e emocionante de como nasceu o movimento social organizado de travestis e transexuais brasileiras.


Jovanna Baby

O livro tem o prefácio escrito por Leticia Nascimento, autora de Transfeminismo, lançado também este ano pela coleção Feminismos Plurais. No texto, Nascimento, que é uma travesti, negra, gorda e de axé, ressalta em um diálogo com a pesquisadora Viviane Vergueiro que Jovanna é Travestis no plural, pois, sua história é atravessada pela vida de tantas outras companheiras de luta que nos ajudam a entender a trajetória do movimento.

Elza Lobão, Monique du Bavieur, Louren Grouber, Adriana Tulipa e Beatriz Senegal são nomes que a autora de Bajubá Odara faz questão de mencionar para que a história daquelas que construíram sonhos e possibilidades de vida sejam lembradas. Jovanna ressalta ainda que travestis serem professoras, doutoras, assistentes sociais, enfermeiras, sempre foi um sonho e que agora se materializa.

Porém, há muito no que avançar. As conquistas alcançadas até aqui são mérito de todas que estiveram e estão se movimentando para a garantia de direitos de nossa população. Travestis e transexuais negras são aquilo que podemos chamar de incendiárias intelectuais, no momento em que assumem suas narrativas não deixam espaços para os pseudo intelectuais que, nas palavras de Lélia Gonzalez: odeiam a nossa gente.

Reverberam, neste momento, as palavras de Keila Simpsom, presidenTRA da ANTRA: “para as margens nós não vamos voltar e se voltarmos, será para buscar as que lá estão”.  Essas palavras são para reafirmar que não aceitamos nenhum direito a menos! Incendiaremos toda e qualquer ação que se apresente no sentido de retrocesso. Nós que enfrentamos a inquisição, a polícia e o Estado genocida, não recuaremos. Seja na academia ou fora dela, estaremos construindo ciência e escrevendo nossas histórias.

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