Idosas enfrentam problemas hormonais, solidão e falta de emprego
Quando criança, Carlota tinha um gatinho, o Alain Delon, que
morreu atropelado aos 12 anos.
Vendo-a tão triste, a mãe a consolou: para cada ano de vida do
bichano, você multiplica por cinco. Essa seria a "idade humana" dele.
Alain Delon, portanto, morreu sessentão, aproveitou bastante a vida.
Carlota adotou contagem similar para si: cada aniversário que
fazia valia por três. Afinal, seu "tipo", ela diz, "não dura
muito, não, minha flor".
Ela é transexual num país onde poucas delas chegam à terceira idade. Não há uma
estatística oficial, mas ONGs LGBTQ trabalham com uma expectativa de
vida que varia entre 35 e 50 anos.
A baiana Carlota, que comemorou seus 67 anos em março com um
"churrasco drag" (legumes e verduras dispostos na cor do arco-íris),
confessa que não faria mais sentido triplicar sua idade, ou hoje teria 201
anos. "Haja Botox."
É que ela, depois de ver tantas amigas assassinadas ou vítimas de Aids, nunca pensou em
chegar até aqui. Agora está tendo que lidar com a velhice.
E, à dor nas juntas e outros problemas típicos dessa fase da vida,
somam-se outros que só transexuais femininas como ela entenderão, afirma.
Terapias hormonais a longo prazo, uso de silicone industrial e
remédios antirretrovirais para trans soropositivas são algumas das questões
citadas num grupo reunido por Daniel Barros, cofundador do Nudhes (Núcleo de
Pesquisa em Direitos Humanos e Saúde LGBT+).
"Hormonioterapia é como se fosse uma reposição hormonal
para o resto da vida. Exige controle periódico de coagulação, cânceres como o
de mama, parâmetros hepáticos", diz Alexandre Saadeh, que coordena o
Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual
(Amtigos), do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP.
"Mas é o que mantém o corpo dentro do perfil feminino e garante
satisfação a essa população."
Os reveses são também sociais. A perda de mercado de trabalho, por exemplo: muitas delas não
conseguem outro emprego após anos, até décadas, como profissionais do
sexo, ofício que deixam de exercer com a idade.
Carlota, ex-prostituta e atual "desempregada
doméstica", ri ao lembrar do próprio caso: "Ninguém quer uva
passa". Vive da ajuda financeira de amigos.
"E tem o envelhecimento solitário. São pessoas que não têm
filhos e envelhecem sozinhas", afirma Barros. Mais: não raramente,
cortaram laços com a família quando se assumiram.
Nem todas passam por isso, claro. "Vou morrer com 120",
e uma senhorinha muito bem acompanhada, garante Denise Taynáh, a semanas de
virar septuagenária.
Seu caso, ela conta, é um pouco diferente: era "um
cinquentão" quando começou a vestir roupas de mulher. Isso já gostava de
fazer desde a infância, quando folheava revistas femininas da mãe, como a
Fon-Fon, e esperava ela ir à feira para andar pela casa com seus sutiãs e
batons.
O pai, "machista nato", não gostava do jeito do filho
e martelou seus dois polegares, com a esperança que "eu parasse de
desmunhecar", conta.
Foi pelo mIRC, um chat paleozoico "que
era como se fosse o 'zap' de hoje", que Denise conheceu o BCC (Brazilian
Crossdresser Club). Um integrante puxou papo assim que entrou: "Você
é CD?".
Ela não fazia ideia que se tratava da sigla para
"Crossdresser", pessoas que gostam de usar roupas do sexo oposto.
"Perguntei: 'CD de que música? Gosto de MPB...'"
Com os anos percebeu que, mais do que
"CD", era trans. Não gostava só de se vestir de mulher. Ela era uma
mulher. Abandonou o nome de batismo, aprendeu a espirrar fininho, e não o
"espirrão de macho", e passou a frequentar a ala gay de sua escola de
samba, o Salgueiro.
Denise se sente privilegiada. Os amigos sambistas a
acolheram, tem um trabalho que ama, na superintendência de políticas LGBT da
Secretaria de Direitos Humanos do Estado do Rio, e os filhos quase todos a
chamam de mãe: Leila, Soraya, Tiago, Pierre e Paulinho —só Joice, com quem
passou anos brigada, quando ainda adotava identidade masculina, que não.
Para seu 70º aniversário, quer fazer a Festa
Caipira da Denise. O tema seria: "Alegria e Gratidão, pelas pessoas me
aceitarem dessa forma", com rugas que não são de preocupação, diz.
Mas o peso da idade não a poupa em um sentido: está
há cinco anos na fila do SUS para a operação de mudança de sexo, e não tem
ideia de quando sua vez chegará, se chegar. Quanto mais velha for, menos
os médicos vão estar dispostos a submetê-la a uma cirurgia, que é mais
delicada na terceira idade.
A cartunista Laerte,
67, se vê numa situação ímpar. "Descobri a transgeneridade e passei a
existir socialmente no feminino há muito pouco tempo. Aos 60, para ser
exata. Ser uma senhora trans é tanta novidade quanto ser uma mulher
trans."
Especula que talvez por ser, enquanto homem,
já bem famosa, não perdeu amigos ou oportunidades de trabalho
—ao contrário de Denise e Carlota, que conheceram trans derrubadas por
Aids, violência e preconceito. "Pelo contrário: ampliei e muito meus
círculos de relações."
Carlota é fã de Laerte desde antes da identidade
trans e adorou vê-la "chutando a porta do armário". Acha importante
que as transexuais ganhem visibilidade, e "ter uma celebridade entre
nós" é a lupa perfeita para ampliar a causa, afirma.
Só assim, um dia, quem sabe a maioria delas poderá
morrer em paz, velhinhas "com dentadura no copo ao lado da cama",
diz. Só não quer a "Marcha Fúnebre" tocando em seu enterro.
"Vou orientar o DJ a colocar 'I Will Survive'". Em português: eu
sobreviverei.
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