Do centro do palco de um teatro lotado, Verónica Valenttino, 39,
avistava na plateia "atores e atrizes incríveis" aos quais ela
assistia, pequena, de Fortaleza, sem saber que um dia participariam juntos de
um mesmo evento como aquele. "Que honra estar diante de vocês,
Renata", dizia a atriz, apontando para a colega Renata Sorrah. "Vera
Holtz, que honra", emendava.
Na noite de 21 de março, profissionais das artes cênicas se
reuniram no Teatro Riachuelo, no Centro do Rio, para a cerimônia de entrega do
Prêmio Shell, a mais importante condecoração do teatro brasileiro, que chegou
em 2023 à 33ª edição. Protagonista do musical "Brenda Lee e o Palácio das
Princesas", Verónica recebeu o troféu Atriz da temporada de 2022 dos
palcos paulistas e entrou, assim, para a história: se tornou a primeira
travesti vencedora de um Shell.
"É possível. A todas as nossas travestis,
às travestis que estão lá em Fortaleza, minha terra: podem perceber que, sim,
podem sonhar. E não precisam ser puta — não que seja um problema ser puta, mas
é porque não vão prostituir nossos corpos nem a nossa melhor porção que é a
arte. Se quiserem estar aqui e viver de arte: podemos, sim, podemos, sim,
podemos, sim", disse.
Nasce uma estrela
Verónica Valenttino se formou em Artes Cênicas no
início dos anos 2000, pelo Instituto Federal do Ceará, em Fortaleza. Nessa
época, começou a integrar o coletivo As Travestidas, cujo elenco incluía o ator
Silvero Pereira. "Sempre trabalhei em espetáculos com essa temática LGBTQIA+, trazendo esses
corpos para um lugar em que a gente não se sentia pertencente por muito
tempo", diz ao TAB. "Nas Travestidas, nossa temática
majoritariamente era essa porque tratava-se de um coletivo com bichas, bichas
pretas, travas, drags. A gente tenta fazer esse teatro que dialogue com as
nossas inquietudes."
Também cantora, Verónica saiu do Ceará em 2015 para
o Rio de Janeiro e, depois, para São Paulo para investir na carreira musical.
"Vim com minha banda porque ganhamos um edital de gravação de disco",
lembra, referindo-se ao grupo de punk rock Verónica Decide Morrer. Inspiradas
na musicalidade da banda norte-americana Blondie e de Rita Lee, as letras
narravam situações vividas por travestis.
"Eu ontem fui à igreja e não vi nada, nada
demais./ Sentada ouvindo um papo de quem não sabe nada, nada demais./ Meu lado
Verónica cobrava nossa felicidade./ Hey, bonito, por que a gente não se vê mais
tarde?", diz um trecho de "Testemunho de Trava", uma das faixas
do primeiro disco do grupo.
Na capital paulista, no entanto, Verónica
Valenttino retornou aos palcos de teatro em espetáculos do grupo A Motosserra
Perfumada. O primeiro deles, "Aquilo que me Arrancaram Foi a única Coisa
que me Restou", encenado em 2016 num subsolo na praça Roosevelt, no Espaço
Satyros 2, era um verdadeira "guerra" masculinista em busca da
virilidade.
Na história, o personagem central sai em busca de
homens e mulheres do seu passado para resgatar partes do seu corpo deixadas com
eles, num alegórico desafio ao mito do "homem de verdade", corajoso,
inabalável e cruel.
"'Aquilo?' era uma peça sobre homens, sobre a
construção da masculinidade. Mas evidente que isso não podia ser visto à margem
das revoluções de gênero no século 21", conta o diretor Biagio Pecorelli,
que conheceu Verónica durante um dos ensaios da montagem e a convidou para
participar do trabalho.
"Eu ainda não sabia como terminar a peça.
Propus que ela cantasse, na cena final, uma versão punk de 'My Way'. Fazia
muito sentido porque além do fato de ter uma travesti cantando uma canção
icônica do patriarcado burguês, a Vero não corresponde a um certo ideal da
imagem feminina. Ela é uma ser rebelde, seu corpo em cena transborda, transgride.
É um manifesto político. Cara, você não consegue tirar o olho dela",
diz Pecorelli.
A peça, embalada com rock, encerrava com uma
espécie de cortejo fúnebre. Depois de discutir com o Filho, o Pai, bêbado, caía
morto aos pés de Verónica. "Ele morria enquanto ela cantava 'I did it my
way' ('Eu fiz do meu jeito')", lembra o diretor. "Ela era o futuro, o
século 30."
'Esse ano eu não
morro'
A consagração de Verónica com seu primeiro Prêmio
Shell, porém, vem com Brenda Lee, personagem-tema do musical sobre a travesti
que, nos anos 1980 e 1990, transformou a própria casa em São Paulo num abrigo
para pessoas com HIV/aids.
O espetáculo do Núcleo Experimental estreou ainda
durante a pandemia, em versão online, e depois virou sucesso de bilheteria nos
teatros da cidade. A peça reúne em cena, além de Verónica, mais cinco artistas
"transvestigêneres", como ela se refere a transgêneros e travestis:
Olivia Lopes, Marina Mathey, Tyller Antunes, Rafaela Bebiano e Leona Jhovs, no elenco,
e Juma Passa, na banda. "O espetáculo é um resgate necessário da nossa
memória, dessa nossa narrativa que sempre foi contada por outros corpos."
Verónica defende, no entanto, que essas artistas
não devem ser reduzidas às suas identidades de gênero. "Se não, caímos no
lugar da zoologização", pondera. "Todas essas conquistas, esses
prêmios, têm vindo não pelo fato de sermos travestis, mas porque somos atrizes
e nunca foi nos dada essa oportunidade de mostrar o nosso trabalho", defende.
"A gente sempre esteve escondida."
No dia 21, a plateia do Prêmio Shell se levantou
para aplaudir Verónica Valenttino, durante seu discurso de vitória. Emocionada,
com o troféu em formato de concha dourada na mão, ela quis encerrar a fala
cantando. "Quero parafrasear Belchior", disse, mencionando o
conterrâneo artista cearense. "Tenho sangrado demais,/ tenho chorado pra
cachorro./ Ano passado eu morri,/ mas esse ano eu não morro."
Fonte: UOL
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