Desrespeito: Mulheres trans são barradas por seguranças em banheiro feminino de festa eletrônica em Lagoa da Prata



Relato de duas transexuais impedidas de usarem o banheiro feminino revela a necessidade de se debater as diferentes manifestações da transfobia na sociedade, inclusive, aquela disfarçada de política institucional.

Nenhum país se torna o que mais mata pessoas transsexuais no mundo da noite para o dia. Antes, é necessário não reconhecê-las, negar empregos e direitos fundamentais, assediá-las e restringir o seu acesso aos espaços públicos. A omissão do Estado sela o combo de violência para, mais tarde, colher a preocupante estatística com um “quase-sorriso” velado no rosto. 

Recentemente, um episódio em Lagoa da Prata chamou a atenção para a questão do acesso aos banheiros femininos por mulheres trans – transfobia geralmente disfarçada de “norma da casa”.

Dhully Fantine e Paolla Martins passaram por momentos de constrangimento e desrespeito no último sábado (27) – as duas mulheres trans foram barradas por seguranças no banheiro feminino na Festa Secrets, que ocorreu em Lagoa da Prata. A situação adquiriu uma camada extra de violência quando as duas foram orientadas a usarem o banheiro masculino.


“Aquele momento foi muito constrangedor e de tristeza por estar passando aquela situação, [nos] expondo na frente de muitas mulheres”, falaram Dhully e Paolla ao Sou+Lagoa e ao Jornal Cidade.

Em um vídeo publicado em sua rede social pessoal, Dhully mostra o momento exato em que ela e Paolla sofrem o constrangimento. Procuradas pela equipe da reportagem, elas disseram ainda que as seguranças esperaram as duas entrarem no banheiro para que a abordagem fosse feita. Depois disso, as seguranças falaram que elas deveriam usar o banheiro masculino – ou seja, não basta assediar, é preciso que a humilhação seja barulhenta e pública. “Mas questionamos a todo momento, sabemos dos nossos diretores. Não tomamos nenhuma medida na festa, pois nos sentimos coagidas”, declararam.


“Não há, por exemplo, para pessoas cis (que se identificam com o gênero com o qual nasceram), uma fiscalização genital”


Caio Pedra, mestre em Direito pela UFMG, especialista em diversidade e população LGBTQIA+  e autor do livro “Cidadania Trans: o acesso à cidadania por travestis e transexuais no Brasil”, comentou aos veículos responsáveis por esta reportagem que, do ponto de vista legal, não existe nenhuma lei ou determinação legal que discipline a matéria. 


Isso porque, para ele, não precisaria existir, já que os banheiros devem ser acessados de acordo com o gênero ao qual determinada pessoa se identifica. De tão básico e óbvio, o direito ao banheiro não está escrito porque até então dispensava a formalidade da lei. “Não há, por exemplo, para pessoas cis, uma fiscalização genital. Não acontece de alguém chegar no banheiro e o segurança perguntar se a pessoa tem um pênis ou uma vagina”. 


Para o advogado, essa é uma questão tipicamente brasileira, já que aqui o “fantasma da ideologia de gênero” ainda paira e cria falsos inimigos. Ainda que não devesse ser necessário comentar sobre o assunto, já que deveria ser algo tratado com naturalidade – pessoas que se identificam com gênero feminino usam o banheiro feminino e pessoas que se identificam com o gênero masculino usam o banheiro masculino – a resistência das pessoas fez com que o tema fosse parar no Supremo Tribunal Federal (STF). 


“Esse processo só teve o voto do relator, o ministro Barroso, que diz que não tem sentido colocar mulheres trans no banheiro masculino, porque o risco que elas vão correr naquele ambiente é enorme. Além disso, elas não representam efetivamente qualquer risco às mulheres cis no banheiro feminino. É um voto completo e totalmente favorável à utilização do banheiro por mulheres trans”, comenta Caio. 


O julgamento, no entanto, foi suspenso por conta de um pedido de vista de um dos ministros, e ainda não foi retomado. “Existe, porém, uma orientação normativa do Ministério Público do Trabalho, órgão que veicula as relações trabalhistas, que reconhece o direito das pessoas acessarem os banheiros conforme elas se identificam”. 


Caio ainda explica que a Carteira de Identidade Social, que é um documento oficial estadual em que constam o nome social e o gênero com o qual a pessoa se identifica, pode ajudar em casos como este, porém, a sua emissão é quase impossível nas cidades do interior. “Se essas mulheres estivessem com o documento de identidade social, por exemplo, e o apresentassem à segurança, ele deveria ser aceito porque tem validade em todo o estado”. 


“Não que seja correto pedir a carteira de identidade na porta do banheiro, a menos que seja pedido de todas as pessoas. Se pedir só de umas, torna-se discriminação”, enfatiza ele. 


Sobre o tema, já existe desde 2019 uma súmula do STF que equipara a homofobia e a transfobia aos crimes prescritos pela Lei 7.716/89 – norma que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. De acordo com Caio, ainda que a segurança seja terceirizada, a organização do evento deve ser responsabilizada.


O advogado insiste que a população trans peça à Polícia Civil a emissão da Carteira de Identidade Social, já que é um direito, e que não deixe de registrar ocorrências, em caso de discriminação, especificando se tratar de um caso de homotransfobia. 


O que a organização do evento diz:


A reportagem entrou em contato com a organização do evento que disse estar surpresa com o ocorrido. “Pode ter certeza que repudiamos qualquer tipo de atitude desta natureza”. Ainda, os responsáveis pela festa disseram que a segurança do evento é terceirizada e que não há orientação nem determinação da produção para pedir identidade nos banheiros. “Identidade somente na portaria para comprovar data de nascimento”.

“A Secrets hoje faz parte do nosso calendário turístico reunindo visitantes de todo Brasil.  Pode ter certeza que  já estamos avaliando o que pode ser feito para que esta situação não mais aconteça”. 

De acordo com as vítimas, Dhully e Paolla, a organização ainda não entrou em contato com elas.

A equipe do Jornal Cidade e do Sou+Lagoa estão atentas tanto ao desdobramento do caso, quanto às medidas elencadas pela produção do evento e pela cidade para que episódios como este não se repitam. Aliás, não é suficiente que eles só não se repitam, é necessário criar mecanismos para que a discriminação à população trans seja combatida ainda na “raiz”.

Esse trabalho preventivo, além de amenizar a condição de vulnerabilidade e às violências às quais transsexuais estão sujeitas, é uma forma de exigir que essas pessoas sejam tratadas … como pessoas – ao contrário de indivíduos que precisam ser fiscalizados até mesmo nas situações mais básicas, como acessar um sanitário. Em caso de novas informações, esta matéria será atualizada. 

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