Xica Manicongo: a primeira travesti do Brasil foi negra

 Condenada à pena de ser queimada viva em praça pública e ter seus descendentes desonrados até a terceira geração pela Igreja racista e travestifóbica, Xica teve de abrir mão de quem era para ter o direito de viver – uma dor que ainda hoje se repete no país que mais mata pessoas travestis e trans no mundo.


Por Ayo
Duque de Caxias (RJ)


HISTÓRIA – Por todos os lados, se espalham discursos que insistem em deslegitimar a existência de pessoas trans e travestis – entre os conservadores, os supostos progressistas e mesmo dentro da população LGB, onde o T é constantemente anulado. Fato é que, nesse contexto, a marginalização de corpos travestis se aprofunda, especialmente quando não se é branca. Apesar disso, a travestilidade negra existe muito antes dos rótulos cisgêneros: é tão histórica e decolonial quanto pode ser.

Xica, a subversiva realeza do Congo

Trazida em meados de 1591 como sujeito escravizado para o território que hoje conhecemos como Salvador, a angolana que, até onde se sabe, foi a primeira travesti do Brasil, teve seu nome apagado e sua vida vendida. Seu nome social foi pensado e reconhecido apenas no século 21, através de Marjorie Marchi, militante travesti negra que foi presidente da Associação de Travestis e Transexuais do Rio de Janeiro (ASTRA) até sua morte. Seu sobrenome era originalmente um título para governantes do reino do Congo (Mwene Kongo). Dessa forma, pode-se traduzir como “realeza do Congo”.

Conhecida por ser namoradeira, Xica desafiava constantemente a condição de desumanização que sofria, passeando coberta por um pano que prendia com o nó para frente e reconquistando com suas mãos negras os momentos de alegria que os colonizadores roubavam. Sua liberdade, no entanto, era uma ofensa extrema aos olhos de homens como Matias Moreira, um cristão puro (que não tinha antepassados judeus) que a confrontou por vezes, intimidando-a para que passasse a usar “roupa de homem”. Xica, em sua ousadia e resistência, desobedeceu, se recusando a vestir uma identidade que não era dela, sendo, então, denunciada à Igreja e acusada por crime de sodomia, sendo referida como “quimbanda, membro de uma quadrilha de feiticeiros sodomitas” (QUIMBANDA DUDU, 2005, p. 27).

Condenada à pena de ser queimada viva em praça pública e ter seus descendentes desonrados até a terceira geração pela Igreja racista e travestifóbica, o que sabemos da história é que nossa realeza do Congo optou por proteger sua vida, precisando abdicar de suas roupas e adotando o estilo direcionado aos homens da época. Xica teve de abrir mão de quem era para ter o direito de viver – uma dor que ainda hoje se repete no país que mais mata pessoas travestis e trans no mundo.


Xica Manicongo vive!

A travestilidade já existia antes mesmo da liberdade – não há correntes que prendam a identidade de uma travesti negra. Embora os escravocratas, a Igreja e toda uma sociedade tenha tentado roubar sua identidade, seu legado está mais vivo do que nunca. Sua existência e desobediência vivem na luta das pessoas travestis e do povo negro. Hoje, Manicongo inspira artistas, ativistas, escritores, estudiosos e todos os que são atravessados por sua história de resistência e de alegria em meio ao inferno do Brasil Colônia. 

Certamente, nossa realeza é honrada na nossa construção diária de uma sociedade nova, onde todas as Xicas possam ser livres, onde nossas Xicas recebam o afeto, o amor e a vida que lhes são direito, e seus corpos e vivências sejam sentidos. Uma sociedade onde a alegria não seja negada, ou seja, uma sociedade socialista.

“Hoje somos seguidores de Xica
E fazemos a cada esquina nossa labuta
Não à toa usamos o cordel
Em memória ao Nordeste e à sua luta
De tantas Severinas, Marias, Joanas
Somos a voz da Xica que no Brasil se perpetua”
(LUSTOSA, 2017)


Fonte: A Verdade.org 

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