Estudo feito na Holanda aponta que uso de hormônios prosseguiu na maioridade; processo demanda acompanhamento, diz especialista
"Se eu morrer, posso voltar como uma menina?",
perguntou Agatha, aos três anos e meio, segundo relata a mãe, Thamirys Nunes.
Uma menina trans, Agatha tem hoje sete anos. A questão, que
ainda deixa Thamirys inquieta ao recordar, foi o ponto de partida da retificação de gênero da garota, que, segundo a
mãe, ficou mais feliz e confiante desde então, sem manifestar dúvidas sobre a
sua nova identidade.
Agatha pode não ser exceção. Estudo feito por uma clínica
referência em identidade de gênero na Holanda mostra que 98% das pessoas que
iniciaram a retificação de gênero antes dos 18 anos mantêm o tratamento
hormonal na maioridade —o que sugere que não se arrependeram da decisão.
Os resultados foram
publicados, em outubro do ano passado, na revista médica The Lancet Child &
Adolescent Health.
Participaram indivíduos que fizeram supressão da puberdade,
tratamento inicial para transgêneros que impede o desenvolvimento de
características biológicas adultas, antes de utilizar hormônios de afirmação de
gênero, método só permitido a partir dos 16 anos, mas que costuma ter início
aos 18.
Entre os 720 participantes, inicialmente 220 (31%) foram
designados do sexo masculino ao nascer e 500 (69%), do sexo feminino. A idade
média para o início da supressão da puberdade para os participantes
biologicamente masculinos foi de 14 anos; para femininos, de 16 anos.
Setecentos e quatro indivíduos (98%) continuaram usando
hormônios de afirmação de gênero após a terapia inicial e prosseguiram na
maioridade.
Para chegar aos resultados, o estudo vinculou seus dados,
coletados em 2018, ao registro nacional de prescrição hormonal da Holanda.
Assim, foram mapeados os jovens ainda recebendo injeção hormonal naquele ano.
Sobre os 2% que não usam mais hormônios de afirmação de gênero,
os cientistas dizem não saber se eles pararam o tratamento porque se
arrependeram da transição. Novos estudos sobre o tema estão previstos.
Karen de Marca, diretora da Sociedade Brasileira de
Endocrinologia e Metabologia, avalia que o resultado do estudo condiz com
avaliações clínicas de todo o mundo sobre atendimento à população trans.
"Se a pessoa inicia seu tratamento de adequação sexual ainda na
menoridade, observamos serem maiores as chances de autossatisfação e uma vida
plenamente feliz."
Segundo ela, o acompanhamento do processo é muito importante.
"Quando a criança primeiro manifesta a sua incongruência de gênero, já é
acionada uma equipe multidisciplinar para atendê-la. São psicólogos e médicos
de diversas especialidades", diz a especialista.
Em relação ao grupo que não prossegue o tratamento, Marca diz
serem raros os casos. "Estima-se que 0,5% da população trans mundial
desista da terapia para afirmação de gênero. É algo difícil de mensurar porque,
em muitos casos, essas pessoas param de frequentar o consultório médico."
A Sociedade Brasileira de Pediatria orienta a seus profissionais
que, percebendo manifestação de inconformidade de gênero da criança ou
adolescente, se faça uma observação criteriosa antes de encaminhar o paciente uma
junta médica responsável pelo tema.
A retificação de Agatha também mudou a rotina de sua mãe.
Thamirys, além de acompanhar a filha em todos os seus passos, passou a se
dedicar ao movimento trans e, principalmente, a dar visibilidade às
crianças inseridas nele.
De Curitiba, a história da família ganhou o país a partir do
perfil do Instagram Minha Criança Trans, criado para compartilhar o crescimento
e as vivências da menina.
Hoje, a página tem pouco mais de 96 mil seguidores. Em 2020, o
projeto virou um livro e, em novembro, uma ONG. Minha
Criança Trans é primeira organização brasileira a tratar especificamente dos direitos,
inclusão e qualidade de vida de crianças e adolescentes trans.
"Falar da Agatha é falar sobre liberdade. Não esquecendo as
dificuldades, claro, mas eu quero focar a felicidade da minha filha", diz
Thamirys.
Thamirys diz ser a ONG a realização de um sonho. Ela relata ter
preocupação com o futuro de crianças trans, especialmente de sua filha, e diz
que fará tudo ao seu alcance para a proteção delas.
Thamirys conta com uma rede de apoio com mães de crianças e jovens trans de todo o
país, como a funcionária pública carioca Isabel de Lima, 48.
Ela conheceu Thamirys durante o processo de retificação da
filha, Estela, de 16 anos.
Durante a infância de Estela, Isabel notava que a menina fugia
dos estereótipos de gênero, mas não sabia como denominar aquilo. Ao assistir a
uma reportagem sobre crianças transexuais, ela percebeu que poderia ser o caso
da filha.
Então, a menina, aos quatro anos, foi levada a uma psicóloga. A
profissional, nas palavras de Isabel "muito despreparada", negou as
suspeitas da mãe. Segundo a terapeuta, Estela era feminina por conviver muito
com a mãe.
Isabel não aceitou a explicação, porém julgou melhor esperar
pelo momento em que a filha se assumiria. O processo foi longo.
Primeiro, Estela se identificou como homem gay. Anos depois, a
garota se disse pessoa não binária, passou por gênero fluído
—que não se identifica com um único papel de gênero— e terminou, em 2021, por
se reconhecer como transexual.
Isabel demorou a entender a mudança. Não por preconceito, diz, e
sim por desconhecimento. A primeira coisa que fez foi ganhar tempo para
entender tudo.
O primeiro passo foi trocar o nome da filha em sua agenda de
contatos para sempre se lembrar de usá-lo. "O nome é a coisa mais importante para uma
pessoa", afirma.
Em seguida, ligou para a escola. Queria que a instituição fizesse o mesmo.
O tratamento hormonal para afirmação de gênero foi
o passo seguinte. Por um curto período, Estela fez a supressão da puberdade
antes de iniciar com a injeção de hormônios femininos. Isabel nunca deixou de
acompanhá-la.
"Hoje, Estela se diz feliz. Feliz e completa. Mas isso não
afasta o medo que sinto. É o medo de toda mãe. O país é cruel para pessoas como
ela", diz.
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