Dois anos depois de dar a Érica Malunguinho (PSOL) o título de
primeira deputada transexual do país, São Paulo terá parlamentares trans também
na Câmara dos Vereadores — e não uma, mas quatro de uma só vez: Érika Hilton
(PSOL), Thammy Miranda (PL), Carolina Iara (parte da candidatura coletiva
Bancada Feminista, do PSOL) e Samara Sosthenes (parte da candidatura coletiva
Quilombo Periférico, também do PSOL).
"É a continuidade de uma luta histórica antiga e nada mais
justo que a gente alcance esses espaços", comemora Malunguinho, em sua
condição de pioneira.
Em
entrevista à Universa,
a deputada reconhece a importância de sua eleição, acredita que um dia a
política institucional tenha "a cara da população brasileira", lembra
os maiores desafios e dá um conselho para os transexuais que vão assumir o
primeiro mandato em janeiro: "Continuem, sigam em frente".
UNIVERSA: Como você vê o resultado
dessa eleição em termos de representatividade?
Érica Malunguinho: Vejo com
muita positividade. É uma continuidade de uma luta histórica, que não começou
ontem, nem acaba amanhã, mas diz respeito a um processo longo, desde Xica
Manicongo [angolana escravizada, considerada a primeira transexual no Brasil,
que se trajava conforme seu gênero, mas foi obrigada a se vestir como homem].
Nada mais justo que, no decorrer dessa história, a gente alcance espaços onde
se discute a sociedade.
E
no que as eleições de 2020 foram diferentes da que você concorreu?
Nós tivemos algumas eleições de pessoas trans pelo Brasil nos
últimos anos, e isso é muito importante. Mas, em 2018, com a minha eleição, é a
primeira vez que se elege nominalmente uma transexual com um discurso explícito
de gênero e raça, alimentando este discurso na esfera pública.
Você acredita que a sua eleição, em
2018, foi um pontapé para o aumento de pessoas trans eleitas em 2020?
Sem dúvidas, a minha eleição reverberou no país e ajudou a mostrar
que nós, pessoas trans, temos sensibilidade, capacidade e principalmente
direito de participar dos debates públicos na política institucional. Como eu
disse, isso não diz respeito só a mim, e sim a toda uma luta coletiva que vai
se construindo no decorrer da história. Mas, sem dúvidas, o fato de termos um
projeto eleito há dois anos com discurso de gênero e raça mobilizou de forma
positiva tanto o eleitorado, que se encorajou para votar, quanto os candidatos,
que se sentiram aptos a concorrer.
De que forma os parlamentares trans
na Câmara dos Vereadores pode reforçar projetos da Alesp e vice-versa? É
possível construir uma aliança entre os legislativos do estado e da capital?
Sem dúvidas, há diversas atuações que podem ser feitas em
conjunto. Quando eu entrei na Alesp, conseguimos estadualizar o Transcidadania
[projeto de inserção social para pessoas trans], que era um projeto municipal.
Estou positiva, dá para fazer inúmeras alianças, afinal, estamos falando do
estado e a capital tem muita importância.
Entre as pessoas trans nominalmente
eleitas temos a Érika Hilton, que é do seu partido, e Thammy Miranda, de um
partido mais conservador. Como você vê a candidatura de pessoas LGBTs em
partidos de direita? Acredita que essa representatividade é efetiva?
Eu acho que é incoerente. Não quero dizer que não é possível ou
relevante, mas as pautas que esses partidos defendem muitas vezes vão contra a
população LGBTQIA+ e contra toda uma população mais vulnerável. É o caso das
privatizações e do "enxugamento" do Estado, projetos que prejudicam
sobretudo a população mais pobre.
Contra fatos
não há argumentos: nós sabemos que machismo, racismo e LGBTfobia são
estruturais e são reproduzidos por todo mundo, na esquerda e na direita, mas
quem faz isso de forma consciente e coloca no debate público pautas contrárias
à diversidade é a direita. Quem faz projeto para que pessoas trans sejam
excluídas dos esportes?
Quem quer excluir mulheres trans de políticas públicas, quem é
contra educação sexual nas escolas? A direita. Se a gente não se atenta a isso,
está sendo incoerente e irresponsável com lutas históricas em defesa da
liberdade.
Que impactos
positivos a maior presença de pessoas trans em casas legislativas pode trazer
para cidades Brasil afora?
Eu acho (e espero!) que estamos lutando pra que a politica
institucional tenha efetivamente a cara da população brasileira, e isso diz
respeito a mulheres cisgênero, pessoas trans, pretas, deficientes, indígenas? E
eu tenho esperança que isso vai se adequar cada vez mais e que, no futuro,
todos os atores da sociedade estejam representados dentro da esfera pública.
E é importante reforçar pessoas trans têm mais a contribuir do que
apenas pautas para a população LGBTQIA+, afinal, discutir direitos da população
LGBTQIA+ envolve discutir transporte público, saúde pública, educação e
diversas outras questões de ordem social, caras aos mais vulneráveis. Uma
sociedade que tira as pessoas da vulnerabilidade é uma sociedade que garante o
bem estar de todos.
Quais você considera terem sido suas
maiores vitórias em dois anos na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo?
A Alesp talvez seja uma das assembleias menos funcionais e menos
legisladoras do país. Estamos a todo momento respondendo demandas do poder
executivo e as pautas das deputadas e deputados têm pouca tramitação, mas há
conquistas. Conseguimos a gratuidade do Bom Prato para a população de rua,
obstruímos um projeto que excluía pessoas trans dos esportes, e garantimos o
atendimento de mulheres trans das Delegacias da Mulher.
E quais foram os maiores desafios
neste período?
O maior desafio talvez tenha sido mostrar que o meu corpo, o corpo
de uma mulher negra, trans e nordestina, carrega um intelecto. As pessoas não
imaginavam que este corpo poderia estar longe das esquinas. Outro grande
desafio foi suprimir as violências verbais que ocorreram dentro da Alesp.
Você pode citar exemplos de
situações em que isso aconteceu?
Eu
fui violentada com um discurso feito em plenário que defendia expulsar travesti
a tapa do banheiro feminino [a fala foi proferida pelo deputado Douglas Garcia (PSL)
em abril de 2019]. Esta é uma tarefa que eu considero que ainda está
em curso, mas que tem sido exitosa. Esses comentários explícitos diminuíram
muito.
Em um outro episódio, quando um grupo de religiosos estava do lado
de fora da Alesp dizendo que Paulo Freire faz as pessoas se tornarem
"aberrações transexuais", me dirigi à presidência da Casa, que
imediatamente acionou a polícia legislativa para restringir essa violência.
E, por fim, que conselho você daria
às pessoas trans que vão assumir o primeiro mandato em janeiro?
Continue, siga em frente, vai dar tudo certo. Nossa presença é
importante inclusive para educar a sociedade para a diversidade. Embora esses
lugares tenham sido construídos para nos afastar, é absolutamente possível.
Fonte: UOL
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