
A luta de Rafaela foi árdua, mas nada que Rafaela já não esperava, afinal, desde o dia que contratou o plano começou a briga para ser respeitada como mulher – o médico que a atendeu se recusava a colocar na ficha que era era do sexo feminino, ainda que em seus documentos pessoais isso estivesse claro.
Lutar, principalmente por respeito, no entanto, sempre foi algo presente da vida dela, desde quando optou por iniciar o tratamento para redesignação de sexo estudando em uma escola católica.
A diferença é que agora, ela luta não só por si, mas para que seu exemplo ajude transsexuais de todo o Brasil. Ela acredita que sua conquista na Justiça representa uma mudança histórica para todas as transsexuais do país, se tornando a primeira mulher transsexual a conseguir as cirurgias pagas pelo plano de saúde.
“É óbvio, não vai ser fácil para as outras pessoas também. Porém, agora ficará um pouco mais fácil, quando eu entrei não havia nenhum precedente a meu favor. Agora as pessoas poderão usar o meu caso para fundamentar seus pedidos, é assim que funciona a jurisprudência, até ficar pacífico. Então saber que nos próximos processos, de outras pessoas, o meu nome vai estar lá, não tem dinheiro que pague”, disse Rafaela ao LIVRE.
Descoberta do gênero
Rafaela nasceu em um corpo masculino. Aos três anos os pais se separaram e, como ela era muito apegada ao pai, a mãe resolveu levá-la a uma psicóloga para lidar com a separação.
“A psicóloga chamou a minha mãe para conversar e disse que eu era uma criança especial, mas que precisaria de um tempo para amadurecer minha mente, para somente assim eu entender o que eu realmente queria ser”, contou Rafaela.
Um dia, ela viu a psicóloga falando com a mãe dela, que chegaria o momento que ela mesmo se aceitaria como era. Aos 12 anos, Rafaela se entendeu como um menino homossexual. Na época, ela morava no interior, em Vera (460 km de Cuiabá), cidade com pouco menos de 11 mil habitantes, e essa era a realidade que conhecia.
Foi quando saiu da cidade e foi morar em Sinop (500 km de Cuiabá) que começou a estudar e descobriu as outras opções que a vida lhe oferecia.
Na cidade, ficou um ano em terapia especializada estudando se era, ou não, uma menina transsexual. Quando se descobriu uma mulher presa em um corpo masculino, iniciou o tratamento hormonal, aos 14 anos, quando estava no 1º ano do ensino médio.
“Eu me lembro que o primeiro médico que eu fui me tratou muito mal, falou que eu não poderia fazer esse tratamento, que não era algo normal, que eu poderia ser esquizofrênica e deveria fazer tratamento para isso, não para questões de transexualidade, que eu nem tinha idade para isso”, lamentou Rafaela ao lembrar.
A mãe e a menina procuraram um psiquiatra em Sorriso (400 km de Cuiabá), visto que a menina já estava bastante depressiva por causa da situação, e foi com apoio do médico que decidiram dar início ao tratamento hormonal, na metade do ano letivo, aos 14 anos, idade entendida pelo Conselho Federal de Medicina como ideal para dar início a este tipo de tratamento.

Primeira luta por respeito
Rapidamente Rafaela começou a ter a mudança corporal. O 1º ano do ensino médio já foi uma luta, pois as mamas começaram a crescer e ela precisava usar uma blusa por baixo do uniforme para não chamar atenção.
Ela estudava em um colégio particular católico e, quando foi renovar a matrícula para o ano seguinte, ela e a mãe foram convidadas pelo coordenador para uma reunião, em que ele disse que era melhor a menina esperar terminar o ensino médio para, só então, continuar o tratamento.
Rafaela se recusou a parar o tratamento hormonal e, por isso, foi convidada a se retirar da instituição e ir para um colégio onde fosse mais aceita, já que a instituição a qual estudava era muito religiosa e com vários princípios, inclusive algumas das aulas eram ministradas por freiras. Diante disso, Rafaela optou por mudar de colégio.
Na outra escola, já entrou com nome social feminino e lutou para que este fosse respeitado pelos professores e colegas. Foi a partir daí que se tornou militante das causas LGBTIQIA+, quando viu que sua vida, dali para sempre, seria sempre uma batalha.
Apoio da família
A mãe e a família sempre apoiaram Rafaela fielmente, inclusive, a jovem tem na mãe a imagem de sua melhor amiga. O pai, no entanto, no começo não entendeu tão fácil a redesignação de gênero.
“Ele disse que isso era errado, que era culpa da minha mãe, que deixava eu conviver demais com as minhas tias”, lembrou Rafaela.
Madeireiro e sem estudo, o pai de Rafaela era bastante simples e achava que ela, quando ainda menino, no início da adolescência, não deveria nem estudar, mas sim ir para o mato trabalhar com ele.
Com o passar do tempo, no entanto, ele não só entendeu a situação, como passou a tratar Rafaela como filha, não mais como filho, o que trouxe imensa realização para a jovem.
“Se você ligar para o meu pai e perguntar: ‘você tem um filho menino?’ Ele vai dizer: ‘não, não tenho filho homem, tenho duas filhas mulheres’. É bem legal isso para mim. Hoje ele não erra os termos, ele sempre fala ‘ela’, ‘filha’, ele não comete erros em relação a gênero”, contou a estudante.
Mudança de documentos
Com 16 anos, Rafaela foi emancipada e foi morar em Curitiba (PR) para estudar e continuar o tratamento hormonal, já que a cidade é referência.
A mãe, criou as filhas como manicure, passou em um concurso e se tornou servidora pública, com isso, pôde pagar o tratamento de Rafaela, visto que à época o SUS não permitia que menores de idade o fizessem (atualmente é permitido).
Entre 17 e 18 anos, Rafaela já estava completamente feminina, faltava apenas que o nome social fosse colocado no documento, mas o Supremo Tribunal Federal (STF) ainda não havia julgado a resolução que permitiria que ela conseguisse o feito.
Foi em agosto de 2018 que o STF reafirmou a jurisprudência permitindo que a pessoa transsexual mudasse o nome e o gênero no registro civil mesmo sem ainda ter feito a cirurgia de redesignação de sexo. Com a resolução, a alteração passou a poder ser feita diretamente no cartório.
Um dia depois da votação do Supremo, Rafaela fez a alteração em seus documentos e se tornou Rafaela Rosa Crispim também nos documentos.

Contratação do plano de Saúde
Há dois anos Rafaela decidiu morar em Cuiabá, onde cursa a faculdade de direito. Já na Capital, decidiu contratar um plano de Saúde. Desde o primeiro dia, teve problemas com o plano.
Ao chegar para a consulta necessária para a contratação, foi atendida por um médico católico, que recebia os pacientes com uma imagem de Nossa Senhora Aparecida no blazer, um crucifixo na porta e uma bíblia em cima da mesa. Apesar de ser cristã desde pequena, ela se sentiu constrangida e receosa.
Ele começou as perguntas normais e, quando chegou na parte da ginecologia, chegaram a um empasse: ele queria saber porque Rafaela não menstruava. O médico, segundo a jovem, questionou se ela tinha alguma doença e ela disse não ter útero por ser uma mulher transsexual.
Questionada se tinha feito alguma cirurgia, ela disse ter apenas retirado as amídalas quando criança. Em seguida, ele chegou à pergunta sobre o gênero e Rafaela disse que era uma mulher, como estava no documento.
Os dois iniciaram uma discussão, até que o médico disse que Rafaela estava mentindo na entrevista e que “se ela tinha o órgão masculino, não era mulher, era um homem”. Já estudante de direito e estagiando com uma advogada, ela exigiu que a consulta fosse pausada e que os advogados do plano de saúde fossem acionados.
A consulta, a partir desse momento, foi acompanhada pela advogada de Rafaela, por telefone, porque não estava na cidade, e por duas advogadas da operadora do plano. O médico voltou a insistir que ela teria órgão sexual masculino e, por isso, seria um homem e não conseguiram entrar em acordo.
Ele queria que a jovem fosse obrigada a passar por uma junta médica para, só então, ser aprovada, ou não, para ter o plano de saúde. Por fim, no entanto, Rafaela pediu que outro médico a atendesse e este a tratou completamente diferente.
“Esse foi muito gentil. Ele simplesmente leu o que estava na ficha do plano de saúde, só isso perguntou meu nome, idade, gênero, se já fiz cirurgia, me pesou e mediu minha pressão, minha temperatura, viu se eu tinha tatuagem, mas nada não perguntou mais nada. Aí as advogadas falaram: ‘ela é uma menina transgênero’. Ele simplesmente olhou para elas e falou: ‘tá, isso não é da minha conta'”, contou.
Disputa na Justiça pelas cirurgias
Em Cuiabá, Rafaela passou a trabalhar com retificação de nomes e trabalhou na Defensoria Pública, onde atendia a pessoas da comunidade LGBTQIA+. Depois, foi para um escritório onde seguiu atendendo a esse público.
Com essa experiência, conheceu centenas de pessoas e ouviu muitas histórias de transsexuais que queriam fazer cirurgias, tanto de retiradas de mamas (no caso dos homens transsexuais), como de colocação de próteses (no caso das mulheres), ou a correção da voz, mas não tinham condições financeiras.
Ela, talvez, conseguisse pagar por essas cirurgias, mas pensou que isso não ajudaria as demais pessoas, além de que pagava o plano mensalmente sem precisar utilizá-lo para qualquer outra cirurgia. Com isso, decidiu lutar na Justiça para conseguir suas cirurgias de correção de voz e de implante de seios pelo plano, para, assim, poder abrir a possibilidade para todos os transsexuais.
Ela começou a conversas com os médicos e, a maioria, todos foram bem receptivos. A tireoplastia tipo IV, no entanto, não é realizada em Cuiabá e muitos dos médicos nem sabiam da existência da cirurgia, que só é realizada em São Paulo (SP), Porto Alegre (RS) e em Fortaleza (CE).
Rafaela optou pelo médico Geraldo Jotz, que atua em Porto Alegre, e pediu autorização do plano de saúde para ser encaminhada para fazer a primeira consulta. Foi nesse pedido a primeira negativa que ela recebeu.

Ela resolveu pagar pela consulta e foi. Depois, entrou com o pedido pela cirurgia de implantes mamários e a tireoplastia tipo IV.
“É importante destacar cirurgia plástica não é coberta, mas o meu caso nós conseguimos provar que seriam cirurgias reparatórias, não algo estético”, frisou.
Ela passou por 12 médicos, entre fonoaudiólogos, endocrinologista, psiquiatra, psicólogos, dermatologista, urologista e ginecologistas, e, em 2019, todos emitiram juntos um laudo multidisciplinar pedindo as cirurgias em caráter de urgência, visto que Rafaela estava em depressão profunda e precisava continuar sua redesignação de sexo.
Mesmo com o pedido de 12 médicos, a operadora de saúde negou as cirurgias. Foi quando ela procurou os advogados Lauricio Cioccari e Suzi Almeida, que entraram com um pedido na Justiça para que as cirurgias fossem feitas pelo plano de saúde.
Na mesma semana, a Justiça emitiu uma liminar ordenando que o plano realizasse as cirurgias em 30 dias, ou pagasse R$ 50 mil em danos a Rafaela. Eles, no entanto, recorreram e o conseguiram adiar a decisão.
O processo foi encaminhado para o desembargador Sebastião Barbosa, que suspendeu o agravo operadora e, no dia 19 de maio deste ano, houve um novo julgamento.
O plano tentou alegar que por Rafaela estar em depressão, ela não tinha condições mentais de tomar decisões sobre si mesma e, por isso, ela deveria ficar impedida de tomar qualquer decisão. O desembargador, porém, não aceitou o argumento.
O plano então alegou que as cirurgias de implante mamário e a das cordas vocais eram irreversíveis. Ainda assim, por unanimidade, os desembargadores negaram o pedido e decidiram manter a decisão de que o plano precisava realizar a cirurgia.
Eles recorreram mais uma vez e no dia 3 de junho a Justiça ordenou a realização da cirurgia em cinco dias a partir da publicação do mandado, sob pena de multa, dando a vitória para Rafaela pela terceira vez.
No dia 20 de junho o plano recorreu mais uma vez. Dentre as argumentações alegaram que por causa da pandemia de coronavírus Mato Grosso está sem leito e, por isso, pediu para mudar o prazo de cinco dias sob a alegação de querer “resguardar a vida daqueles que necessitarão de leitos diante da infeliz pandemia”.
Os advogados Lauricio Cioccari e Suzi Almeida preparam a defesa de Rafaela para a nova contestação contra o plano. A Justiça, no entanto, ainda não voltou atrás da última decisão que deu vitória à jovem.

Significado da vitória
Para Rafaela, após sete meses de luta na Justiça e uma vida de batalha diária, a vitória teve sabor ainda maior. “Quando eu vi a decisão, eu senti que a justiça foi feita”, disse.
“É como quando conseguiram fazer mudar o nome lá no Supremo, é a mesma coisa. É o primeiro, não existe nenhum outro igual. É o primeiro nacional e vai valer como procedente para todos os planos. Eu consegui, pelo menos um pouquinho, ajudar as pessoas”, comemorou Rafaela.
Depois de formada em direito, ela pretende passar em um concurso da Defensoria Pública para continuar ajudando a comunidade LGBTQIA+.
“Quando fui tentar entrar com ação, eu ouvi de quatro advogados que eu não conseguiria. Agora, eu estou recebendo mensagens de pessoas pedindo ajuda e agradecendo, principalmente meninos trans, que precisam tirar as mamas. E eu fiquei tão feliz”, disse.
Rafaela acredita que seu processo abriu a possibilidade para que todas as pessoas transsexuais possam lutar por seus direitos e, agora, espera servir como exemplo de que é possível, por mais difícil que seja a batalha.
Fonte: O Livre
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