Jovanna Baby: ‘Quem me perseguia passou a me respeitar’

Da prostituição aos cargos públicos, a mulher negra e travesti liderou os primeiros movimentos transexuais no Brasil e hoje representa o Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negras e Negros

Texto: Edda Ribeiro | Edição: Nataly Simões | Imagem: Isabela Alves

“Eu me assumo mulher travesti por uma questão política do movimento, o qual temos que ter empatia. Acredito que todas e todos nós somos transexuais, e existem as que têm a necessidade de readequação sexual e as que não. O termo deve ser usado para generalizar todas as pessoas trans, mas não para diferenciar identidades”. A fala é de Jovanna Cardoso da Silva, mulher negra com uma trajetória de vida repleta de títulos.

Aos 13 anos de idade, sua companhia diária era das prostitutas do Espírito Santo que entraram na vida da baiana sendo hostis com aquele rosto jovem que passou a ocupar as calçadas de Vitória em busca de clientes. “Algumas das que me perseguiam passaram a me respeitar”, conta.

Inspirada por mulheres como a rainha da beleza Martha Rocha, eleita a primeira Miss Brasil, e Deise Nunes, primeira mulher negra a vencer o mesmo título, Jovanna, por quase 60 anos, se acostumou a organizar as mulheres ao seu redor. Hoje ela afirma ser ‘à frente do seu tempo’. A travesti constrói seu pensamento e experiência entre lutas pelo reconhecimento de identidade: mulher travesti. Fundadora da primeira entidade trans brasileira e latino-americana, a ASTRAL, hoje a travesti é Coordenadora Municipal de Direitos Humanos em Picos, no Piauí, e reconhecida pela criação do movimento de transexuais no Brasil.

A gestão municipal para Jovanna começou no interior do Piauí. A cidade, a 266 km de Teresina, tem pouco mais de 78 mil habitantes. “Antes, se perguntasse a qualquer pessoa dos movimentos sociais onde é Picos, ninguém saberia responder. Hoje somos um município referência no Brasil por várias leis de promoção de minorias e somos a única cidade do Piauí a ter Plano Plurianual, Lei Orgânica de Assistência Social e Lei de Diretrizes Orçamentárias específicos para LGBTs. Colocamos a cidade para além das fronteiras do município e do estado”, conta.

Jovanna nasceu em Mucuri, na década de 1960, onde viveu até o começo da adolescência com cinco irmãs e três irmãos. A casa, comandada por pais cristãos, também era hostil com a identidade da jovem. Assim, Jovanna saiu da cidade natal e se deparou com os procedimentos da rua no Espírito Santo. “Fui morar em Vitória sem conhecer ninguém e sem apoio social nenhum. Me prostituía nas ruas centrais, comi o pão que o diabo amassou por conta das donas dos pontos que tomavam o dinheiro e espancavam quem chegava depois delas”, lembra.

Durante a noite, os homens passavam pela vida Jovanna; ao amanhecer, ela descansava. Seus clientes, segundo ela, eram os mesmo que a perseguiam durante o dia, agentes da segurança pública. “Havia ali a hipocrisia do ser humano, que tende a se posicionar contra aquilo que é objeto de desejo, mas que não é ‘normal’ para a sociedade”, diz. “Sofríamos pela segregação e não podíamos sair nas ruas”, recorda. Certo dia, enquanto aguardava na fila do Cine Santa Cecília, no Centro de Vitória, para comprar ingresso do filme “Teixeirinha a 7 Provas”, Jovanna foi presa.

A existência de Jovanna para a Segurança Pública não era da liderança que marcou sua vida nos anos seguintes. Após quatro dias detida e tipificada no artigo 59, da Lei de Contravenções Penais, a jovem foi solta por uma advogada da Secretaria de Assistência Social de Vitória. Ao retornar ao ponto de trabalho naquela noite, descobriu que não foi a única a ser presa e enquadrada na conhecida Lei da Vadiagem, que não compreendia a situação das prostitutas como trabalho. Junto das companheiras Bianca e Kelly, que se reuniam numa escadaria próxima ao ponto de prostituição, a menina ajudou a fundar a Associação das Damas da Noite do Espírito Santo. Em 1979, tornou-se vice presidente da organização.

“Toda semana tinha uma blitz e detenção de várias profissionais do sexo. Chegamos à conclusão que a situação de perseguição da polícia estava insustentável. Ponderamos que precisaríamos fazer alguma coisa e criar um fato político para diminuir os ataques sofridos”, revela. A principal bandeira do movimento era eliminar a violência a que essas mulheres eram submetidas. O maior empecilho, na época, foi custear o registro feito em 1981.

Em terras cariocas

Mesmo mudando de cidade, a violência não deixava o cotidiano de Jovanna e a vontade de ser organizar permanecia. A vida da travesti na prostituição seguiu até a década de 1990, com pontos de trabalho novos: a Praça Tiradentes, a Praça Mauá e a Central do Brasil, no Rio de Janeiro. A já existência da Associação das Prostitutas da Vila Mimosa deu um start para os trâmites da criação de um novo movimento de prostitutas. Jovanna viu nascer a segunda organização da qual fez parte: a ASTRAL, Associação de Travestis e Liberados.

Para ela, o nome contemplava identidades até hoje pouco reconhecidas. “O ‘Liberados’ se deu pelo fato de que à época muitas travestis eram homens de dia, e a noite se montavam para se prostituir. Porém, durante o dia não assumiram a sua identidade feminina. Nós, enquanto líderes, não queríamos deixá-las de fora”, conta. O termo também abrangia trans, gays e lésbicas que se interessassem em se unir ao grupo.

A liderança seguiu atravessando a vida da mulher. Após a fundação da ASTRAL, Jovanna se tornou presidente do movimento. O dia do registro de pessoa jurídica da organização foi, para ela, um marco histórico da capital fluminense. “Convocamos toda a mídia televisiva, escrita e falada. Nascia ali a primeira associação de travestis do Brasil e da América Latina, na cidade do Rio de Janeiro, e assim fui a percussora do Movimento Social Organizado de Travestis. Tudo graças à insatisfação de apenas sete pessoas”, destaca. O motivo: banir a violência, a perseguição social e buscar reconhecimento nas discussões de gênero dos movimentos LGBTs brasileiros.

Da prostituição aos cargos públicos

Jovanna foi trabalhadora do sexo até os 25 anos. Passou a fazer faxinas e outros trabalhos, e logo se tornou agente multiplicadora de informação sobre direitos sexuais. A violência, no entanto, continuava seguindo os passos de Jovanna. “Saí do Rio quando começou a onda das balas perdidas na cidade, nos anos 2000. Estava no orelhão na Central com uma amiga, e ela foi baleada na minha frente. Fiquei apavorada”, lembra.

Antes de voltar para o Piauí, em 2006 Jovanna coordenou um projeto no governo do Rio de Janeiro. O Cidadão Positivo trabalhava políticas para abrigar moradores de rua diagnosticados com HIV. No documentário “Uma trajetória do Movimento de Travestis e Trans no Brasil”, dirigido por Cláudio Nascimento e Marcio Caetano, a militante conta o marco que se deu com a discussão do HIV para ela. “A chegada da AIDS para as travestis foi muito dolorosa. Algumas, mal sabendo [do diagnóstico], já estavam morrendo. Não tinha tempo de fazer o processo de posto de saúde, hospital e médico. Ficamos desesperadas”, relata. Daquela época, Jovanna foi uma das únicas que sobreviveu à doença.

A convite de Kátia Tapety, primeira transexual eleita para um cargo político no Brasil, Jovanna se mudou para o Piauí, onde se tornou assessora parlamentar. Em seguida, veio a direção municipal de políticas da diversidade sexual. A coordenação da Secretaria de Direitos Humanos chegou em 2013 e dura até hoje.

“Para mim, o Piauí é minha segunda casa”, conta a gestora, que em 2014 recebeu o título de cidadania piauiense pela Assembléia Legislativa do estado, durante sessão que celebrava o Dia Internacional de Combate à Homofobia. “Me orgulho de atuar na qualificação de mulheres, formando lideranças na identificação, prevenção e combate a misoginia, machismo e feminicídio. Sou uma referência para várias, cis e trans, no enfrentamento à violência acometida contra elas”. Entre as conquistas, a travesti participou da suspensão da lei que proibia discussões sobre gênero e sexualidade nas escolas municipais e particulares da cidade.

Com a pandemia da Covid-19, o novo coronavírus, Jovanna tem feito suas atribuições em home office, discutindo nos movimentos de mulheres e LGBTs e também se adaptou a realidade das lives. Em casa, organizou o Segundo Festival Traviarcado, evento do Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negras e Negros, que ocorreu em junho. A chamada online resumia os quase 60 anos de Jovanna, que representa o grupo: “O Fonatrans acredita que não existe revolução LGBTI sem que travestis e transexuais negras e negros ocupem espaços como protagonistas e tenham suas pautas políticas respeitadas dentro dos movimentos sociais”.

Jovanna acredita que os relacionamentos amorosos e o que escolheu para fazer da sua vida como liderança não combinam. “Sou uma mulher à frente do meu tempo e acredito que isso traria dificuldades em ter um compromisso sério de amor”. A mulher que saiu de Mucuri, na Bahia, quer retornar para casa: quer viver a velhice no mesmo lugar onde nasceu.

“Sonho com isso a cada minuto, até porque fui embora de lá muito novinha”, compartilha. Em seu lugar de origem, a mulher vai recordar suas lutas e conquistas, que começaram quando ainda era conhecida pelas colegas prostitutas nas esquinas de Vitória por ser tão jovem. Ali recebeu um dos primeiros títulos e se tornou a tão conhecida Jovanna Baby.

No mês da Mulher Negra, Latino-Americana e Caribenha, o Alma Preta traz uma série de reportagens especiais que contam a história de mulheres inspiradoras.

Fonte: Alma Preta

Comentários