Atraso na troca de nome e tratamento hormonal suspenso: pessoas trans relatam dramas na pandemia de Covid-19

Grupo em Campinas que já vivia em situação de vulnerabilidade enfrenta maiores dificuldades por conta da crise do novo coronavírus. 'Política não foi pensada para incluir a todos', diz doutoranda da Unicamp.


Elloah Fonseca pensa em começar a hormônio terapia por conta própria devido às mudanças no sistema de saúde. — Foto: Antonia Moreira

Os impactos da pandemia do novo coronavírus atingiram de forma intensa a comunidade trans, que já vivia em situação de vulnerabilidade. Relatos de moradoras de Campinas (SP) expõem desde dificuldades no reconhecimento do nome social para receber o auxílio do governo até problemas para iniciar a terapia hormonal, devido a mudanças no sistema de saúde.

Fernanda de Lena, doutoranda em demografia na Unicamp, atuou na pesquisa que mapeia os impactos da pandemia em pessoas LGBTQI+. De 10 mil entrevistados, 44% das lésbicas, 34% dos gays, 47% das pessoas bissexuais e pansexuais, e 42% das transexuais temem problemas de saúde mental durante a pandemia.

Entre as dificuldades apontadas pela população trans, aparece o auxílio emergencial de R$ 600. Cidadãos se viram invisíveis quando cadastravam o nome social, já registrado em cartório, junto do CPF.

"O governo cria uma política que não é inclusiva, que não consegue pensar que existem pessoas que precisam desse auxílio e que não estão dentro de uma regra heteronormativa. A política não foi pensada para incluir a todos e sim só uma parte da população", afirma Fernanda.

G1 questionou a Receita Federal, onde é feita a verificação dos dados da pessoa que deseja receber o benefício, sobre a falha. Em nota, o órgão disse que o CPF guarda o nome social "caso tenha sido solicitada a inclusão dessa informação à Receita". Já o Ministério da Cidadania afirmou que o sistema Fala.Br e os números 121 ou 0800 707 2003 estão disponíveis para tratar estas questões.

A pandemia também adiou o sonho de muitas pessoas trans em começar a terapia hormonal. Elloah Gabriely Fonseca, de 22 anos, é uma mulher trans e havia planejado iniciar a transição este ano. Mas, com as mudanças no sistema de saúde devido à pandemia, decidiu começar a tomar os hormônios sem o acompanhamento de um especialista.

“Eu ia começar a tomar, mas não tomei ainda. 
Eu vou começar a tomar por conta, porque não tem médico, está tudo fechado. Provavelmente, se liberar algum psicólogo, algum endocrinologista para eu poder fazer os exames que eu preciso, vai liberar só em setembro", conta.
Elloah Grabiely, de 22 anos, faz tranças para se manter durante a crise causada pela pandemia da Covid-19. — Foto: Arquivo pessoal

Elloah Grabiely, de 22 anos, faz tranças para se manter durante a crise causada pela pandemia da Covid-19. — Foto: Arquivo pessoal

A psicóloga Bárbara Menêses do Centro de Referência LGBT de Campinas explicou que os centros de saúde da cidade que realizam a hormônio terapia pararam de oferecer os serviços para pacientes novos durante a pandemia.

"Isso é algo que tem gerado bastante ansiedade na população trans".

'Sou sozinha'

Elloah Gabriely nasceu em Cubatão (SP), na Baixada Santista, e está há sete meses em Campinas para trabalhar e tentar terminar o ensino médio. Ela paga uma escola particular para estudar no período noturno, mas, quando pararam as atividades presenciais, Gabriely deixou de acompanhar as aulas por não ter internet em casa.

A jovem trabalha em uma empresa que presta serviço de limpeza em lojas de departamento do Shopping Parque D. Pedro. Quando a quarentena foi decretada, o salário sofreu um corte de 12,9%. Ela ainda teve que se mudar da república onde vivia após todos os moradores resolverem voltar para as respectivas famílias.

"Eu estou recebendo bem menos do que eu recebia. Estou tendo que dar meus pulos, fazer faxina por fora, trabalhar na reciclagem. Eu também faço cabelo [tranças], porque eu tenho contas para pagar. Eu sou sozinha", relatou Gabriely.

Os problemas financeiros também afetaram Lua Behart, de 20 anos. Nascida em Franca (SP) e moradora de Campinas desde os 3 anos, ela foi expulsa de casa aos 14 por ser uma mulher trans. Conseguiu receber o auxílio emergencial e mora na Casa Sem Preconceitos, local que acolhe pessoas transexuais, travestis e transgêneras que não têm para onde ir.

Lua recebe atendimento psicológico por meio do programa Consultório na Rua, que propôs um projeto de artesanato para receber uma renda.

"Eu estou fazendo artesanato em algumas garrafas, na verdade em várias, que a gente vai começar a distribuir nas praças de Campinas para pessoas, instituições, para poder colocar água e sabão para as pessoas poderem se higienizar", contou Behart.

Lua Behart, de 20 anos, é artista e começou a fazer artesanato em garrafas para se manter.  — Foto: Suzy Cristel 
Lua Behart, de 20 anos, é artista e começou a fazer artesanato em garrafas para se manter. — Foto: Suzy Cristel
Fonte: G1

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