Há 19 anos vivendo em Paris, Giovanna Magrini, 45,
teve uma vida marcada por episódios de violência e transfobia. Trocou o Brasil
pela França para superar os traumas e conseguiu realizar um sonho de infância:
ser atriz de cinema.
Ela nasceu como Ricardo, em Bauru (SP), e logo
notou que era diferente dos outros meninos. "Eu não entendia porque tinha
pênis se quando me olhava no espelho eu via uma menina", conta. Não
demorou muito para perceber que era uma menina "presa" em um corpo de
menino.
"Meu pai e irmãos passaram a ser cruéis comigo
quando notaram que eu não era apenas um menino afeminado. Aos 13, declarei que
era uma mulher. Diante da minha revelação, começaram as agressões físicas e
verbais, e minha mãe no centro daquela confusão."
Na adolescência, Ricardo se tornou Giovanna (em
homenagem a cantora francesa Édith Piaf cujo nome verdadeiro era Édith Giovanna
Gassion) e passou a se virar sozinha. O preconceito não era somente dentro de
casa, de onde teve que sair. Na escola, foi expulsa de duas instituições por
transfobia. A falta de oportunidades e de um apoio familiar, levou a jovem para
o mercado do sexo aos 16 anos.
"Eu não gostava de me prostituir, mas
precisava. Ninguém me dava emprego, porque eu já era uma mocinha usando roupas
femininas, 'cabelão', unhas pintadas e com um RG masculino. Mas eu precisava
estudar, pagar ônibus e bancar um hotel barato para dormir."
Cafetinas, falsos
amores e programa do Ratinho
Em 1995, após concluir o ensino médio, ela se mudou
para capital paulista: "Ali encontrei os piores seres da humanidade: gente
de péssimo caráter, cafetinas, cafetões, falsos amores, humilhação e agressões
de outras trans inclusive. Eu sofri muito em São Paulo, transfobia e
escravidão, de gays, lésbicas e cafetinas famosas daquela época como Cris Negão
(morta em 2007). Me relacionei com homens também que me batiam, me roubavam.
São Paulo foi uma escola tremenda, e tenho gratidão por isso."
A prótese de silicone com que sonhava ela ganhou
três anos mais tarde no programa do Ratinho. Na atração, 3 mulheres trans
tinham que relatar as suas histórias de vida, mas apenas 1 teria o desejo
atendido. Enquanto elas omitiram suas reais 'profissões', Giovanna conta que
foi direta com o apresentador: "Sou uma trabalhadora do sexo. Como vou
juntar R$ 20 mil reais, Ratinho, pra por uma prótese cobrando R$ 20 o
programa?". O desabafo deu certo.
A prótese de silicone foi essencial para compor a
sua identidade de gênero, na época ela recebeu convites para posar nua para
revistas pornográficas e atuar em filmes eróticos na companhia do namorado. No
lado familiar, contava apenas com o apoio da mãe que a visitava em São Paulo.
Foram quase oito anos trabalhando na rua, sendo
alvo de pedras, sacos com xixi e gangues que tentavam espancá-la. "Muitas
reclamam da violência dos clientes. Para mim, a pior violência era ver a morte
de amigas, por clientes e cafetinas."
Suicídio, depressão e
vida na Europa
Alguns anos depois, ao lado do namorado, ela
abandonou a prostituição, conseguiu montar um negócio próprio, de venda de
marmitas, e se reconciliou com a família.
Com o suicídio do namorado, em 2000, ela decide
partir para a Europa. Em Paris, sem falar o idioma e sem conhecer ninguém,
acaba em um hotel decadente habitado por trans latino-americanas. Voltou para a
prostituição para sobreviver.
"Tudo o que eu tinha era um pedaço de papel
escrito a pronúncia em francês de 'sexo oral' e 'sexo completo'. Eu tinha 24
anos e estava de volta ao mercado do sexo no Bois de Boulogne (uma das
principais áreas verdes parisiense, onde há um reduto de prostituição)."
Em 2003, uma produtora de cinema estava fazendo
testes com garotas trans para uma participação de destaque no filme franco-brasileiro
Tiresia, que contava no elenco com atores brasileiros e franceses. Giovanna e
uma amiga passam no teste e fazem algumas cenas ao lado da protagonista Clara
Choveaux.
Entrando para o
cinema
A sétima arte despertou em Giovanna um outro desejo
antigo: ser atriz. No ano seguinte, participa de Wild Side (Lado Selvagem-
2004), que foi aclamado pelo público e ganhou prêmios em alguns festivais mundo
afora. O sucesso do longa abriu portas para outros trabalhos e possibilitou que
a trans brasileira tirasse o registro de atriz.
"Eu estava começando a trilhar uma carreira, e
logo vieram participações em duas séries francesas, filmes, programas de humor
na TV, comercial para o canal Pink TV e diversos outros trabalhos. Este ano
mesmo, serão lançados dois filmes no cinema de que participo", conta.
Para bancar os altos custos da cidade, manteve a
prostituição em paralelo à carreira de atriz por mais alguns anos.
"A arte é o meu detox"
Em 2011, Giovanna rouba a cena no documentário
brasileiro O Voo da Beleza, que revelava as histórias de mulheres trans de
diversas nacionalidades em Paris. A partir daí, ela aumentou a participação em
filmes e também em campanhas relacionadas à causa LGBT, inclusive para a Prefeitura
de Paris.
Recentemente, o governo francês cedeu a ela um
apartamento por meio de um programa de habitação social semelhante aos que
existem no Brasil. O momento não poderia ter sido mais oportuno, o prédio que
ela morava na companhia de outras trans estava repleto de infiltrações.
"Hoje, vivo com dignidade em um apartamento
social, uma das maiores conquistas da minha vida, e me formei em educação
terapêutica."
Giovanna também recebeu um convite para trabalhar
como mediadora de saúde pública em um hospital de Paris, cuja função será fazer
o acompanhamento de imigrantes latinos.
Ao olhar para trás, ela relembra como foi difícil a
trajetória. "Trabalhei muito ao longo desses 19 anos, não somente com
sexo, também fui faxineira, paguei todos os impostos, me prostitui e sou
orgulhosa disso, a prostituição (um termo pejorativo que eu não gosto pois
remete a marginalização) foi o meu passado, o meu ontem e me transformou na
mulher que sou hoje."
Após
19 anos vivendo na França, Giovanna, aos 45 anos, se considera uma mulher
feliz, e já conta 42 trabalhos entre cinema, TV e campanhas. "Acho que
nunca vou deixar de viver na França. A cada 16 horas uma mulher trans é morta
no Brasil, essa estatística felizmente não existe na Europa."
Fonte: UOL
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