Jornalista e mulher trans, Alana Rocha revela como foi entrevistar agressor de travestis, em TV na BA

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Alana Rocha: “Perguntei se alguma travesti havia machucado o coração dele” (Crédito: Osmar Gama)

A jornalista Alana Rocha, 37 anos, não tem medo de ir para as ruas, se debruçar em entrevistas espinhosas e desenvolver as mais diversas pautas sobre crimes que ocorrem na Bahia. E sempre com identidade própria, com muita leveza e humor, que fazem a audiência subir e Alana cair nas graças do público.
Natural de Riachão de Jacuípe, a 186 quilômetros de Salvador, a jornalista admite que desde muito pequena carrega o jornalismo na veia. Na infância, assistia à Kátia GuzzoGil Gomes e Márcia Goldschmidt na TV, e levava tudo para as brincadeiras. Logo percebeu que tinha o dom da comunicação e seguiu em busca de seu sonho – sempre com o incentivo da mãe.
A carreira começou nas rádios, em que, logo na primeira experiência, teve que noticiar um homicídio na cidade. Experiência que tirou de letra e na qual viu a importância do jornalismo: a família da vítima ficou sabendo do ocorrido por meio de sua narração e foi ao local reconhecer o corpo. Posteriormente, criou um blog local – o Hora da Verdade – no qual ainda posta vídeos sobre diversos assuntos da cidade, e cursou jornalismo na FAT, localizada em Feira de Santana.
Em 2017, Alana se tornou notícia em todo o Brasil como a primeira mulher trans a trabalhar como repórter de um programa policial, Ronda, da TV Aratu/ SBT. Inicialmente, cobriria apenas as férias do apresentador, mas logo o público pediu mais e Alana continuou. Realizou grandes reportagens, como o dia em que entrevistou um agressor de travestis. Mas no fim de 2018, acabou sendo desligada da empresa por ter gravado um story apoiando um governador do PT.
Em entrevista ao NLUCON, Alana fala de sua paixão pelo jornalismo, os bastidores do programa, a opinião sobre a necessidade do diploma e as vivências de uma mulher trans na profissão. Confira em vídeo e texto abaixo:


– Como foi que você decidiu ser jornalista?
Quando eu era criança toda brincadeira que eu tinha envolvia jornalismo. Mesmo quando eu era menininho, ao invés de brincar de carrinho e bangbang com os amigos, que eu até gostava, pois sempre gostei de carros, sempre botava alguma coisa de jornalismo na brincadeira. Eu assistia ao jornal BA TV e na época a âncora era a Kátia Guzzo. Eu anotava tudo no papel, o que ela fazia e de manhã, quando minha mãe ia trabalhar, eu me trocava no quarto, colocava uma caixa de papelão e fingia que estava em um estúdio, fingindo que apresentava um telejornal, como se eu fosse a Kátia Guzzo.
– Teve outra referências?
Depois começou o programa da Márcia Goldschmidt (no SBT). Eu achei maravilhosa aquela mulher arretada, que entrava no meio da briga do povo e se engalfinhava com o povo. Eu amava aquilo ali e costumo falar que sou um pouco sensacionalista (risos). Aí surgiu o Aqui e Agora (no SBT), que fechou com chave de ouro. Quando eu via o Gil Gomes, Christina Rocha, Hermano Henning, aí eu vi que era isso que eu queria para a minha vida.
– Como foi que você iniciou sua carreira?
Comecei na comunicação quando voltei para minha cidade. Eu transitei em várias cidades durante a minha transição (de gênero), sempre com o pensamento de trabalhar mais cedo possível para poder ajudar a minha mãe. E nessa ânsia eu acabei vindo trabalhar em Salvador, mas as coisas não deram muito certo para mim na década de 90. Quando voltei para a minha cidade em 2003, estava sempre com pessoas do rádio da cidade e comecei a fazer participações na rádio AM e gravar esquetes de comercial. Em 2008 me candidatei a vereadora e perdi. O prefeito que havia ganhado e que eu apoiei me colocou em uma rádio para fazer um programa musical ao meio dia. Depois comecei a falar para o diretor da rádio para fazer um programa jornalístico ao meio dia, porque a cidade só tinha jornal de manhã. E ele topou.
 – Como foi o primeiro programa?
No primeiro teve um homicídio e eu entrei ao vivo na rádio. Não tinha ninguém ali, não tinha polícia, não tinha nada. Aí fiz coisa errada de mexer no corpo para ver onde tinha tomado o tiro, virei para falar a descrição do rosto. Acabou que a família dele estava na cidade vizinha, escutou o programa e soube que era o filho que havia sido morto. Aí foi que deslanchou. Eu criei o blog (Hora da Verdade), numa época em que a internet estava deslanchando. Quando fui demitida por questões políticas, dois anos depois, eu fiquei só com o blog e ele se fortaleceu.
 – Chegou a investir no seu blog jornalístico?
Comprei equipamento, câmera, microfone, falei desse sonho de fazer televisão e comecei a fazer vídeos. Chegou em um certo momento que era o principal site da cidade. Depois foram surgindo outros. Mas foi importantíssimo para mim que a TV Aratu / SBT me descobriu.
– Cursou faculdade de jornalismo?
Em 2012, eu botei na cabeça que queria fazer jornalismo, pois o diploma abre portas e para eu aprender mais com a teoria. Daí eu fiz o processo seletivo em Itabuna e consegui passar. Mas a saudade da minha mãe era muito grande, porque eu sou filha única e somos só nós duas. Um político da cidade me chamou e falou: “você tenta fazer a transferência da faculdade, vem pra cá e a gente te bota na assessoria”. Aí eu transferi para Feira de Santana, FAT, que eu considero a minha casa. Em 2015 eu me formei.
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Alana e a mãe, Conceição Oliveira, em sua formatura de Jornalismo
– Você acha que faz diferença ter feito a faculdade? Há uma discussão antiga sobre a exigência ou não do diploma. O que você pensa sobre isso?
Foi fundamental. Eu não sabia o que era um plano sequência, um off, eu fazia tudo de um jeito muito doido e até hoje não sei como as pessoas entendiam os meus vídeos de reportagem (risos). Com o aprendizado da teoria eu consegui aperfeiçoar demais. Eu sei que há muitas pessoas que nascem com o dom e que tem oportunidade de entrar em uma empresa sem o diploma e que hoje são um grande sucesso, mas eu acredito que é importante ter o diploma para ter a teoria, aprender semiótica, teorias da comunicação e tantas outras coisas que podem te enriquecer enquanto profissional. E é uma forma das empresas selecionarem, porque em todo o meio há pessoas que não são legais. Então é claro que nosso meio de comunicação também tem. Além disso, o diploma é uma forma de filtrar essas pessoas e dar espaço para profissionais que precisam.
– Foi exigido diploma quando foi para a filiada do SBT?
Foi a primeira coisa que me perguntaram: você tem MTB? Tem o diploma? Eu disse: tenho, posso ir trabalhar. Então isso poderia ter sido uma barreira para mim. Sempre falo que mesmo que você se comunique bem, faça a faculdade porque é um carimbo para você passar na cara. Quando vier alguém dizer que você não é, você diz: Sou sim, estudei para isso. Pega o diploma e mostra mesmo, passa na cara (risos).
– Quando você estava na faculdade, você já havia dito ao mundo que é uma mulher trans? Aliás, qual é o termo que você prefere?
Eu sempre falo mulher trans, mas em outras vezes eu falo travesti mesmo. No Brasil algumas pessoas não entendem, então se eu chego em um lugar e vejo que as pessoas não vão entender, eu falo que sou uma traveca, sou uma travesti (risos). Para mim, existe essa diferença: a travesti se aceita e aceita o próprio corpo. E no caso da transexual, não. Eu não rejeito, não tenho a psicose de ter ódio do meu órgão genital, mas eu não acho que ele seja adequado a mim e não aceito o que eu tenho. Antes eu achava que era uma questão só de estética, mas hoje eu vejo que é uma questão de consciência, corpo e de um conjunto todo harmônico do organismo.
– Na faculdade você já havia falado que é Alana para o mundo?
Eu já havia feito a transição. Inclusive eu fui a primeira na Bahia a ter esse papel no jornalismo e de cursar a vida acadêmica já na transição. Para mim foi muito bom e eu tive uma receptividade muito boa. Assim que eu entrei, eles me chamaram: tudo seu aqui vai ser tratado com o nome social, pode usar o banheiro feminino, se alguém te constranger procure imediatamente a coordenação do curso ou o diretor. O diretor diz até hoje: faça o mestrado para que você seja professora aqui na instituição. E é um dos meus sonhos. Eu nunca tive medo, porque nunca tive restrições de conviver em sociedade.
– Em algum momento chegou a sofrer transfobia na faculdade?
Sempre levei muita coisa na esportiva. Costumo dizer que o bolo da gente só cresce se botamos fermento. A mesma coisa é o preconceito e a vivência. Se você dá razão e importância demais a coisas pequenas, no decorrer do dia você não vive. Então tem muita coisa que eu deixo passar batido e faço de conta que não foi comigo. Trouxe esse padrão para a minha vida e acho que dá para viver dessa forma. Então eu só posso dizer que amei a faculdade, tanto que tenho saudade de lá.
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– Eu nunca tive a oportunidade de trabalhar com uma jornalista trans ou travesti. Como é ser uma das primeiras referências para muitas pessoas?
É muito gostoso. Eu não quero ser referência e exemplo a ser seguido, pois todos nós temos defeitos, vive a vida de uma forma e pensa de uma maneira. Mas o principal objetivo é que as empresas abram as portas e reconheçam as pessoas trans como profissionais que são. Conheço muitas pessoas que sonham ser médica, enfermeira, psicóloga, jornalista, ser caixa de supermercado, mas que tem medo e receio de pedir emprego. E, sem o apoio da família, acabam entrando na marginalidade e na prostituição. Dói ver tantas travestis e transexuais com um bom potencial profissional e não acham uma oportunidade. Aqui temos um menino trans que trabalha na TV estadual e ele convive bem com o pessoal, até porque eles valorizam as minorias.
– Como foi sua vivência dentro das redações?
Nunca senti preconceito de ninguém, eu juro por Deus. Não estou querendo ser boazinha, até porque me entristeci de ter saído de lá. Achei que saí de uma forma injusta (aguarde as próximas matérias, pois falaremos em detalhes sobre o que ocorreu), mas nem por isso vou inventar e dizer coisas que não existiram. Foi maravilhoso, tanto é que sinto muita falta. Ontem o cinegrafista e o apresentador do programa fizeram uma chamada de vídeo e eles dizem que sentem saudade. Então isso é que é gostoso. Eu chorei quando a chamada encerrou. Foi uma experiência transcendental ver colegas dizerem: Poxa, Alana, eu vejo poucas pessoas que tem essa gana de jornalismo, essa vontade de fazer que você tem”. É lindo demais escutar essas coisas de colegas e pessoas que você pensa que querem te derrubar. Eu fui a primeira repórter transexual da Bahia a trabalhar em um programa policial. No Brasil, existem duas trabalhando, que é a Liza Gomes e a Léo Áquilla, que são do entretenimento.
– Para fazer o jornalismo policial é preciso ter um talento específico. Eu mesmo não teria condições de falar sobre mortos, perseguição… Você concorda que precisa ter uma vontade específica de trabalhar na área?
É verdade. Vejo meios colegas dizendo que não conseguiriam trabalhar com jornalismo policial. Quem trabalha nessa área realmente tem um gosto para fazer. Como eu disse, tive uma referência na infância que foi o Aqui e Agora, com Gil Gomes, então criei um carinho por policialescos. Agora para mim tem que ter um diferencial. Tem que ter a sensibilidade de saber como lidar. Eu fazia humor algumas vezes, porque chegava na delegacia e era um preso de uma bobagem, foi pego com uma quantidade pequena de droga ou era um preso gaiato que procurava brincadeira. Estava cansada de chegar e eles falarem do meu perfume: “Eita, gata, que repórter cheirosa”. E eu entrava na vibe deles: “E aí, um baita menino bonito destes, poderia estar malhando, chegando numas negas e está aqui preso? Rapaz, tome tento”. Quando eu vi que era aqueles presos bravos, tirado a bichão, eu ia para cima bichona também: “E aí, véio, como é que você matou o cara desse jeito?”. Então eu acho que tem que ter esse equilíbrio e gostar. Como o programa era ao meio dia, eu costumava dizer que, se você servir, experimentar e não gostar do prato que você fez, o telespectador também não vai comer. Então tem que botar um temperinho para a comida ficar mais atrativa e gostosa.
– Têm algumas reportagens que tenham te marcado?
Teve um caso de alguns gatos abandonados em uma área da cidade. Eu já estava sensível porque tinha ido visitar a minha mãe no interior e ela é louca por gatos. Lá em casa tem gato até no teto (risos). Aí na hora eu lembrei de minha mãe e comecei a chorar. Eu estava ao vivo e o diretor começou a dizer: “chora mais, chora mais”. E eu dizia: “Eu estou chorando de verdade, não é fingindo para ter audiência não”. Depois, nessa mesma colônia, um homem pegou um pitbull e soltava umas duas vezes por semana para comer os gatos. Os defensores dos animais começaram a mandar fotos dos gatos dilacerados, as vísceras, o que o pitbull fazia. Eu fiquei dois dias sem dormir direito, chorava. Fui fazer a matéria de novo e ele parou de fazer isso. Começaram a vigilância, teve uma protetora de animais que tirou todos os gatos de lá. Graças a Deus hoje em dia tem um número muito reduzido de gatos por lá e sempre que pode essa mulher vai lá e distribui em abrigos. Então foi muito bom isso.
– Mais alguma matéria que ache interessante dividir?
Outra matéria que me marcou muito foi de um cara, que estava agredindo travestis e transexuais que fazem programa aqui. Duas meninas foram à polícia dar queixa dele e a gente fez um ao vivo. Aí mostrou o retrato falado dele. Cerca de cinco dias depois a delegada conseguiu prender ele. O pessoal da TV falou: “Um agressor de travesti, tem que ser a Alana para fazer um ao vivo com ele”. Eu fui e quando cheguei lá fiz as perguntas de praxe. “Por que você fez isso? Você tem algum trauma? Você é gay?”. E ele sempre calado, dizendo que não tinha nada a declarar. Daí na última pergunta eu disse: “Venha cá, você já teve um relacionamento com uma trans ou travesti que magoou o seu coração?”. Botei o microfone e ele não falou nada. No dia seguinte, a delegada me ligou: “Alana, assim que você saiu, a gente tomou o depoimento dele. Ele disse que agredia travestis porque o pai largou a mãe e foi morar com uma travesti. Aí ele tomou ódio de travesti”. Ele descontava a raiva e agredia qualquer travesti que ele encontrava na rua. Sempre a gente vê que (o preconceito) tem um fundo de alguma coisa, né?
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– Como você analisa essa violência voltada para a população trans? Você tem medo ou já foi vítima dessa violência?
Medo a gente tem, pois sabe que o mundo está pior e as pessoas estão cada vez mais frias, irracionais e cheias de ódio gratuito. Mas não sei o que acontece comigo, porque raramente as pessoas percebem que eu sou trans. Às vezes eu estou na rua e as pessoas me veem como uma mulher cis. Mas vejo essa violência como algo irracional, impensada, porque quando a gente não entende de algo a gente procura estudar e conhecer. Então eu peço para essas pessoas que tem ódio gratuito de LGBT é que leia, procura entender. Como a TV me dizia: “Você não está aqui por ser uma mulher trans. Você está aqui pelo seu potencial, pelo seu profissionalismo, pela jornalista que você é. Ser trans foi um diferencial, foi algo de bom, que levantou bandeira, que deu destaque, mas o mais importante é o seu profissionalismo. Então eu acho que as pessoas precisam parar de ver o corpo, a orientação sexual da pessoa e passar a ver o caráter, o profissional e o ser humano que a pessoa é. É enxergar o que tem dentro do coração e da mente. A partir do momento em que isso acontecer vai mudar muita coisa.
– Alana, no último ano foi desligada da filiada do SBT. O que pretende agora?
Quero voltar a trabalhar, tanto em TV, em rádio, mas principalmente com jornalismo e comunicação, que é o que eu sei e gosto de fazer.
Revisão do texto de Vivian Navarro. Ela é assistente judiciário, andreense, feminista e ativista dos direitos humanos.
Fonte: NLUCON

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