Indianare Siqueira fala sobre expulsão do PSOL/RJ: “Transfobia, LGBTfobia e Aidsfobia pesaram”

indianare1
Indianare Siqueira

Indianare Siqueira é puta, ativista transvestigenere e vereadora suplente do Rio de Janeiro. Foram 6.166 votos nas eleições de 2016 que a colocaram como uma das candidatas do PSOL nas eleições futuras. Contudo, em 2018, Indianare teve sua candidatura impugnada. E no dia 6 de abril foi expulsa pelo Comitê de Ética do PSOL.
O motivo é uma disputa antiga de espaço da Casa Nuvem, ponto de cultura, confraternização e não de moradia, e da Casa Nem, que se tornou uma casa de passagem para pessoas LGBTI, sobretudo travestis e mulheres trans, em situação de vulnerabilidade social. Há ainda uma disputa de contrato e dívida da locação.
Os fundadores da Nuvem alegam que Indianare se apropriou do espaço cedido para o projeto Prepara Nem, um cursinho preparatório para o vestibular para pessoas trans, com o objetivo de criar a Casa Nem. Segundo eles, ela fez uso de ameaças, injúrias, difamação e se apropriou do local. Já Indianare alega que ocupou (definição dada pelos squatters, ou “ocupas” – pessoas que defendem o direito à diferença e o direito a ocupar casas desabitadas ou abandonadas, movimento que emerge após a Segunda Guerra Mundial), após episódios de transfobia, falta de diálogo e abandono do espaço.
Ainda que o PSOL não tenha relação direta com a disputa, ele se utilizou de um dossiê sobre o caso para a analisar a permanência ou expulsão de Indianare pela Comissão De Ética. A conclusão do relatório foi de que “a filiada e figura pública Indianare apresenta postura política desalinhada com o Programa e Estatuto do PSOL”. O relatório diz que ressalta o “compromisso com a causa trans e o máximo respeito a toda pauta do movimento LGBT”.
Conversamos com Indianare no domingo (14), durante o Encontro LGBTQI do PSOL, em São Paulo. Aqui, ela dá a sua versão. (Caso algum representante do partido ou pessoas mencionadas queiram se pronunciar, o espaço está aberto).
Em vídeo:

Em texto: 
– Você participou do Encontro LGBTQI do PSOL, em São Paulo, e falou sobre a recente desfiliação que sofreu do partido no Rio de Janeiro. O que aconteceu?
Na verdade se deu uma expulsão, não foi uma desfiliação. Foi decidido pela Executiva Nacional, depois do parecer do Comitê de Ética. Eles usaram um dossiê cheio de problemas, transfóbico, aidsfóbico, racista e com um monte de preconceitos contra populações vulneráveis. Esse dossiê não é do partido, mas das pessoas que acusam. O Diretório Nacional assina um relatório, que a gente não sabe quem escreveu, mas que o Diretório é responsável, desqualificando as testemunhas de defesa, todo o parecer técnico dos advogados e tendo a responsabilidade. Desta forma, eles aprovam o dossiê e acabam agindo por tabela com racismo, transfobia, aidsfobia.
– O que eles alegam?
É todo o processo Casa Nuvem e Casa Nem. Você foi citado no dossiê por conta de uma reportagem que você fez contando a história. Mas o problema do dossiê é que ele constrói a imagem das travestis e é tendencioso no meu caso, construindo uma imagem de violenta e agressiva. Ele vai tendendo para esse lado, de que as travestis são agressivas, do medo que as pessoas têm das travestis e transexuais, até chegar na parte aidsfóbica. Ele diz que a intenção de uma das travestis que se feriu após se livrar de agressões físicas que sofreu é que com o sangue dela, contaminado com HIV/AIDS, contaminaria outras pessoas com HIV/AIDS. Expondo o nome da pessoa, a sorologia da pessoa e expondo a pessoa, o que é crime. Eu não cometi nenhum crime pelo que eles apontam. Eles sim. Depois dessa nota e desse relatório, o partido comete um crime.
– Ainda que tenhamos falado anteriormente, é importante explicar o que aconteceu com a Casa Nuvem e a Casa Nem para que as pessoas entendam. O que aconteceu?
Foi essa ocupação, que era do coletivo que eu fazia parte. Aí tem toda uma situação de opressões (dentro da Casa Nuvem). A gente tenta fazer o debate, mas o debate não consegue ser feito. Então, a gente decide ocupar o espaço (da Casa Nuvem) para inclusive forçar o debate, mas que depois com o desenrolar das coisas torna-se o abrigo LGBTI Casa Nem.
Tem todas as questões de tentativa de transferência de contrato e, nisso tudo, sofrendo ataques, sofrendo uma série de desmoralizações que as pessoas trans já sofrem em sociedade, o que inviabiliza a transferência de contrato, o que leva o esvaziamento das atividades da casa e a acumulação de uma dívida de aluguéis.
A gente vinha conseguindo pagar mais de 70 mil reais, depois entramos com um processo judicial por conta do despejo. Depois o despejo é cancelado e inicia-se outro processo porque eu entro como interessada no processo. E…
– De qualquer forma, o que eu não entendi é: tudo isso ocorria dentro de movimentos fora do PSOL. Qual era a relação do PSOL com a Casa Nem e Casa Nuvem?
Não tem nada a ver (com o partido). Mas (tinha a ver com) as pessoas que eram ativistas, algumas ligadas ao partido de forma ‘ativista independente’, como a Isabel Ferreira Zarzuela (co-fundadora da Casa Nuvem), e que fez todo esse dossiê, porque tinham amigos, militou com alguns mandatos, militou com pessoas que são influentes nos mandatos como assessores.
– A gente vive em um governo que ameaça os nossos direitos. Receber esse fogo amigo é mais complicado?
(Fogo amigo) das (pessoas) que são cis, né? (Até) houve comentários (negativos) das pessoas trans, mas das que nem sabem do meu processo. As pessoas trans que sabem da história estão todas contra a expulsão.
– Como se dá a sua entrada no PSOL? E qual era a relação que você tinha?
Eu não me filiei ao PSOL. Foi o PSOL que, através alguns amigos que conheciam a minha militância, me convidaram. Eles precisavam dessa luta (trans, LGBTI, das prostitutas, pessoas em situação de vulnerabilidade) para desconstruir algumas situações que estavam acontecendo no partido. Eu me filio e depois me torno assessora do Jean (Wyllys). O PSOL é um partido de correntes, essas correntes têm algumas tendências, eu sou próxima de algumas correntes e de outras nem tanto por conta de machismo que são estruturais na sociedade. Mas não é só o PSOL. A gente está falando de um partido que faz parte de uma sociedade que é estruturada através de todas essas opressões, só que é um partido que também se diz inclusivo e socialista e acontece um fato desses. Então eu fui convidada a me filiar através da pessoa que eu era, através da militante que eu era. Não mudei uma vírgula. Ao contrário. Acho até que fiquei mais calma e tranquila, entendendo que agora, além de tudo, me tornei uma pessoa pública que representa o partido. E tudo o que eu falasse e as minhas atitudes tinham outro peso. Eu entendo que depois das eleições de 2016 eu passo a ocupar um outro lugar no Rio de Janeiro. Quando me convidaram, sabendo que sou assim, porque já não recusam a minha filiação?
Indianara Siqueira - Jean Wyllys
Indianare chegou a ser assessora de Jean Wyllys
– Será que eles não acharam que você nem pudesse ter chances de ter uma votação expressiva ou que tivesse algum destaque?
De repente sim. Eu nem sei se eles achavam isso. De repente eles nem conheciam a pessoa. Porque eu me filio o partido, mas não passo ter contato com as pessoas. Não é um contato que eu vá sair junto com eles, porque eles fazem parte da mesma estrutura opressora e eu estou me recusando a essa estrutura. Nesse meu recusar a gente passa a ter um distanciamento, até que eu começo a ter problemas dentro do partido vindo das “radfem” e uma delas é expulsa.
– Calma aí: Uma das “rad” que foi transfóbica com você foi expulsa?
Ela se candidatou e a candidatura dela foi impugnada.
– Foi a Eloisa Samy?
Isso. Quando sou chamada para defender essa impugnação, para fazer o debate, eu me recuso. Eu digo: eu não vou fazer o debate porque, por mais radfem que ela seja, ela é uma mulher, lésbica e a gente tem que saber de quem a gente está falando. Eu não vou me propor a ir a um debate onde uma mulher lésbica vai ser impugnada e expulsa quando os machos que cometeram uma série de machismos e opressões contra mulheres, inclusive agressões físicas, assédio, não foram. E não foram colocados nesse espaço que esta mulher está sendo colocada. Eu digo que ela tem o direito de não ser impugnada e disputar comigo com o público e que o público julgue nas urnas. Mas eles impugnam essa mulher. E aí começa o erro, porque além de machismo foi lesbofobia. Então a LGBTfobia não aconteceu só agora, isso já aconteceu antes. Mas ela (depois de impugnada) decidiu ir para outro partido, foi uma decisão dela. Mas foi lesbofóbico.
– Você acha que a decisão em cima de você pesa a transfobia?
Pesa transfobia, pela LGBTfobia, pesa aidsfobia, por conta desses debates e processos que aconteceram com determinadas pessoas e que por conta de um certo revanchismo, de uma vingança, que vem dessas mulheres, que perderam uma de suas representantes para uma outra representante, de uma outra categoria, que é mais inferior. Então o debate não é feito honestamente. Eu tenho problemas com Eloisa Samy, eu tenho problemas com as radfem, isso é público e notório. Mas a gente precisa saber de quem a gente está falando. Os discursos delas ainda ajudam a nos matar, a nos agredir, sim. Eles são excludentes. Mas elas também são mulheres, que nessa sociedade são oprimidas, por mais que ocupem lugares de privilégios sobre outras mulheres, que são as trans, as pessoas intersexo, pessoas não binárias. E esse debate não é feito com honestidade. Fiquei muito chocada, pois essas questões foram me colocando neste lugar e, em plena candidatura, o pessoal Nuvem decide fazer um ataque. Então não sou eu que exponho o partido. Quem expõe o partido foram essas pessoas. Foram eles que atacaram primeiro.
– Nas últimas eleições, mesmo sendo vereadora suplente, a sua candidatura foi impugnada. Sente que já rolava uma espécie de perseguição? Como se deu a sua impugnação?
(nesse momento a entrevista é interrompida e a gente retoma)
Tem o assassinato de Marielle, que é um fato muito forte, e começa as questões de: “O que vai ser da política agora? Quais são as pessoas que vão ser candidatas? Mas aí tem uma pessoa que é vista como suja e a gente tem que resolver. A melhor maneira é (impugnar)…”.  Eles aceitam a minha candidatura, com registro, como pessoa pública defendendo a candidatura, e quando a chega o momento de registrar a candidatura eles fazem a impugnação, porque daí eu não tenho mais tempo de levar esse capital político que eu acumulei para outro partido. Então já começam uma perseguição, através de transfobia, dessa história toda. Essa história (da Casa Nem e Casa Nuvem) já existia em 2016, quando eu me torno vereadora suplente. Essa história já era pública e notória. Aí eles aceitam, usam a Casa Nem, usam o espaço político, usam as pessoas da Casa Nem. Eles não davam a mínima. Aí ocorre o dossiê, eles impugnam e só quando impugnam é que se dão conta de quem é realmente a pessoa, qual é a militante que eles estão impugnando. Mas daí não dá mais para eles voltarem atrás, pedirem desculpa e admitirem que erraram. Tem aquele orgulho de não poder fazer isso porque é “o partido político”.
– Tem muita gente que vai falar que no PSOL há várias candidatas que são trans e que conseguiram se eleger, e que por isso não seria transfobia. O que pode falar disso?
Não podemos esquecer de dizer que essas candidatas não receberam financiamento. Assim como eu me tornei vereadora suplente em 2016, elas conseguiram por meio do trabalho delas, militância de base, dos movimentos que resolveram trabalhar com elas, porque elas não tiveram apoio do partido. E hoje eles vão usar a imagem dela para dizer que não foi transfobia. Só que essas parlamentares trans estão dizendo que foi, estão me apoiando.
– Muito falou de você ter um ativismo agressivo, de falar incisivamente. Você é essa pessoa agressiva?
Depende de quem está escutando, depende do que você está escutando como figura de linguagem, o linguajar, as letras de música que estou usando. Escutar a cantora falando é maravilhoso. Agora escutar vindo da boca de uma travesti e uma trans é agressivo. Algumas das coisas que eu digo são frases de músicas, inclusive.
– Qual frase de música por exemplo?
“Se eu não posso ser violenta não é minha revolução”. É uma das partes da música: “Eu sou passiva, mas meto bala, se vier tapar meu cu com a sua Bíblia”. Aí eu uso isso. Tem a teoria e tem a prática. Eu carrego a prática, meu corpo carrega a prática, de tudo o que eu vivi em 30 anos de ativismo. E de um ativismo construído como base para hoje se chegar a alguns direitos garantidos através do Superior Tribunal Federal, de Conselho Nacional de Justiça. Então eu sou incisiva. Então quando eu estiver falando não adianta tentar me deslegitimar, porque você (Neto) ocupa um espaço que você é gay, mas você é branco, então você ocupa um espaço de privilégios, que a mim vão ser negados. Da mesma maneira que eu ocupo acessos e espaços que uma trans negra ou com deficiência não vão ter. A gente tem que falar disso. Então quando eu estiver falando e você tentar me cortar, eu vou virar para você e falar: “tem certeza que vai me cortar, vai me silenciar?”. E isso é agressivo. “Não, não é você que tem que falar sobre transfobia. Quem fala sobre transfobia aqui sou eu. Sim, esse é o meu lugar de fala. Estou pedindo para você não falar. Você já falou, deu sua opinião e eu estou falando que o que você falou não é assim e que inclusive isso é reprodução (de transfobia)”. E aí pronto. Falar que as pessoas estão reproduzindo transfobia isso é ser agressiva. Eu sei, porque eu moro com um homem cisgênero.
13996299_10154474692219869_8499630407951355007_o
Indianare em campanha para vereadora do Rio pelo PSOL em 2016 (foto: Adriana Medeiros)
– De qual maneira isso tudo tem te afetado?
É você que adoece, né? Desde que fui impugnada eu venho sangrando muito. Tive que fazer uma série de exames, ultrassonografia e não deu nada. Então eu vi que poderia ser algo psicológico. Eu vivo em protocolo de segurança, tenho câmeras de vigilância em casa. Isso tudo te adoece, te afeta e te cansa, porque as pessoas ficam te perguntando. Mas as pessoas conhecem o seu trabalho e a sua militância.
– Você chegou a ser vereadora suplente. Rolou o comentário de que você poderia ficar no lugar de Marielle Franco depois do assassinato. Isso é verdade?
Os movimentos sociais exigiram que eu assumisse o mandato da Marielle. Houve toda essa discussão, mas eu decidi que não ia fazer essa discussão. Eu era a quarta suplente, passei para terceira e passei para a segunda com o exílio do Jean e o David indo para federal.
– Ficou nítido que você era uma das fortes candidatas a conseguir se eleger. Você pretende se filiar a outro partido?
Pretendo. Os movimentos decidiram e a gente vai construir uma candidatura coletiva. Se não for pelo PSOL, que eles se manifestem a tempo de a gente possa construir isso através de outro partido.
– Continuaria no PSOL, se eles revessem a expulsão?
Não sei. Sabe como é a relação de um casal, quando há a agressão do marido contra a esposa? Por mais que esse marido nunca mais agrida, ele agrediu, então essa relação já está contaminada e complicada. Ele só vai ser um homem melhor e promissor para a próxima relação. Então eles só vão ser melhores com as próximas, que vierem depois de mim. A nossa relação já está desgastada. Vai ser sempre azeda, complicada.
– Tem algo que gostaria de dizer?
Ele (O PSOL) teve essas práticas, mas ele é um partido como todos os partidos de esquerda que são estruturados dentro de uma sociedade na qual nós vivemos, que é transfóbica, racista, machista. Mas ainda assim ele é o partido da abertura. Se eu vou ser expulsa, se eu vou ser integrada ou não, é outra questão, mas que não aconteça com outra. Que isso sirva para que o partido se torne mais inclusivo. Mas que esse é um instrumento e um espaço que as travestis e transexuais tem que estar, como nós temos hoje as deputadas estaduais Erica Malunguinho, Erika Hilton e Robeyoncé, e as assessoras trans e os parlamentares gays. Por mais que não saibam todos os debates vão ter que aprender a fazer o debate das opressões para que esse partido se torne inclusivo, socialista e anti-capitalista.
– Para finalizar, com o despejo da Casa Nem, onde as pessoas estão?

Estão na Casa Nem, que mudou para uma ocupação em Botafogo, em Vila Isabel, na Zona Norte, na ocupação Elza Soares. São seis quartos de um hotel foram reservados para a Casa Nem. Mas já vai sofrer reintegração de posse em algum momento, então a gente já tem outro espaço preparado para acolher a Casa Nem.

– A luta não para nunca…

Nunca.

39f8e-indianara2bsiqueira2b1
Revisado e corrigido por Luisa Lamar e Raphaely Luz
Fonte: NLUCON

Comentários