Faltam vagas para trans no mercado de trabalho, por discriminação

Enfrentando preconceito em ambientes educacionais e corporativos, travestis e transexuais têm muita dificuldade de inserção e progressão no mundo laboral. Assim, 90% dessa população sobrevive da prostituição. Aos poucos, a inclusão está acontecendo, mas ainda há muito progredir. E o estado precisa fazer sua parte, por meio de políticas públicas



A população LBGT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais ou transgêneros) está entre as que mais sofre para conseguir inserção e desenvolvimento profissional. O subgrupo da população trans tem de enfrentar desafios ainda maiores. Ao assumir a transexualidade, boa parte das pessoas é excluída pela família ou até expulsa de casa, além de sofrer bullying, o que torna complicado frequentar uma instituição de ensino. Sem formação e com muitos empecilhos, entre eles a discriminação de empregadores, arrumar trabalho é meta quase inalcançável. Essas são algumas das conclusões dos participantes do workshop LGBT e democracia, promovido pela Andi e pela Ben & Jerry’s, em São Paulo. O que poderia ajudar a mudar o jogo são políticas públicas e, infelizmente, o Brasil conta com poucas voltadas a esse público. Mesmo que vagarosamente, no entanto, alguns avanços têm sido implementados por meio de regulamentações.

"A iniciativa de oferecer cotas para trans consolida a Uneb como uma grande universidade inclusiva e popular José Bites, reitor da Universidade do Estado da Bahia. Foto: Ascult/Uneb
"A iniciativa de oferecer cotas para trans consolida a Uneb como uma grande universidade inclusiva e popular José Bites, reitor da Universidade do Estado da Bahia. Foto: Ascult/Uneb

Entre eles, a cirurgia de mudança de sexo realizada pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e o direito de usar o nome social em cargos e universidades públicas, no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e nas candidaturas para as eleições deste ano. Recentemente, transgêneros, transexuais e travestis ganharam um incentivo para estudar ou retomar os estudos. A Universidade do Estado da Bahia (Uneb) anunciou a criação de cotas para essa parcela da população na graduação e na pós-graduação para 2019. Apesar de a decisão ter sido criticada por certos grupos, a direção se orgulha da decisão que “consolida a Uneb como uma grande universidade inclusiva e popular”, na visão do reitor José Bites. Iniciativas como essa, porém, são raridades, mas necessárias, como avalia o professor de psicologia do Centro Universitário Iesb, Aldry Monteiro Ribeiro.

"A questão da vida trans envolve uma profunda exclusão social que começa em casa. À medida que a pessoa vai fazendo o processo de transição, a família, muitas vezes, tem dificuldade de aceitar o processo. E, quanto mais baixa a renda, maior a possibilidade de ser expulsa de casa Aldry Monteiro Ribeiro, professor de psicologia. Foto: Reprodução
"A questão da vida trans envolve uma profunda exclusão social que começa em casa. À medida que a pessoa vai fazendo o processo de transição, a família, muitas vezes, tem dificuldade de aceitar o processo. E, quanto mais baixa a renda, maior a possibilidade de ser expulsa de casa Aldry Monteiro Ribeiro, professor de psicologia. Foto: Reprodução

“A questão da vida trans envolve uma profunda exclusão social que começa em casa. À medida que a pessoa vai fazendo o processo de transição, a família, muitas vezes, tem dificuldade de aceitá-la. E quanto baixa a renda, maior a possibilidade de ser expulsa de casa”, explica. “A escola não sabe lidar com a transição, e a pessoa acaba sendo excluída da vida escolar. Corre riscos porque fica sem apoio social e, não raramente, acaba indo para a prostituição. Hoje, muitos trans não têm formação profissional por não conseguirem permanecer nas redes de ensino”, afirma. Alguns acabam se envolvendo com o tráfico de drogas pela dificuldade de encontrar oportunidades de trabalho formal. “Não há política pública de inclusão social e de trabalho para os trans. Existem algumas ações específicas, mas aqui em Brasília eu não conheço nenhuma”, conta.

Entenda a diferença

De acordo com a cartilha O Ministério Público e a igualdade de direitos para LGBTI, do Ministério Público Federal (MPF), transgêneros é a expressão “guarda-chuva” para designar pessoas com identidade de gênero diferente do sexo biológico. No caso dos transexuais, costuma-se dizer que a pessoa nasceu com “cabeça de mulher em corpo masculino” (ou vice-versa). Assim, muitos procuram modificações corporais com o intuito de adequar o físico à identidade de gênero (mas, isso não é obrigatório, não havendo nenhum tipo de condição específica ou forma corporal exigidas para o reconhecimento jurídico da identidade transexual). São travestis as pessoas que vivenciam papéis de gênero feminino, mas não se reconhecem como homens ou como mulheres. Travestis, independentemente de como se reconhecem, preferem ser tratadas no feminino, considerando insultuoso serem adjetivadas no masculino: as travestis, sim; os travestis, não.
 
Saiba o que existe na Esfera Federal

» Decreto nº 8.727/2016: garante o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis e transexuais no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional.
» Portaria nº 2.803/2013 do Ministério da Saúde: redefine e amplia o processo transexualizador no Sistema Único de Saúde (SUS).
» Resolução nº 1.955/2010 do Conselho Federal de Medicina: estabelece procedimentos para a realização de cirurgias de transgenitalização.
» Portaria conjunta do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) nº 1/2018: regulamenta a inclusão do nome social no cadastro eleitoral.

Distrito Federal

» Lei nº 2.615/2000: determina sanções às práticas discriminatórias em razão da orientação sexual das pessoas.
» Decreto nº 37.982/2017: dispõe sobre o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas trans no âmbito da administração pública direta e indireta do Distrito Federal.

Exclusão dolorosa

Algumas pessoas vão se sentir pressionadas a mudarem seus corpos para se enquadrarem no ideal de mulher ou de homem para conseguir se manter no espaço de trabalho.E isso não deixa de ser uma forma de violência". Foto: Arquivo Pessoal
Algumas pessoas vão se sentir pressionadas a mudarem seus corpos para se enquadrarem no ideal de mulher ou de homem para conseguir se manter no espaço de trabalho.E isso não deixa de ser uma forma de violência". Foto: Arquivo Pessoal

A União Libertária de Travestis e Mulheres Transexuais (Ultra), em parceria com a Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (FAC/UNB), fez uma pesquisa qualitativa sobre a empregabilidade da população trans na capital federal e constatou que trabalhadores sofrem preconceito no ambiente corporativo quando demonstram ou têm a transexualidade notada. “Algumas pessoas vão se sentir pressionadas a mudarem seus corpos para se enquadrarem no ideal de mulher ou de homem para conseguir se manter no espaço de trabalho. E isso não deixa de ser uma forma de violência”, afirma Maria Léo Borges Araruna, representante da Ultra. Os pesquisadores também constataram que transexuais brancos e de classes mais altas são menos rejeitados que os negros.

O mercado de trabalho ainda não assume essa população"
O mercado de trabalho ainda não assume essa população"

De acordo com a presidente da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), Keila Simpson, falar sobre emprego para a população trans não é fácil. “O mercado de trabalho ainda não assume essa população. É claro que uma empresa ou outra contrata travestis e transexuais, mas muitos evitam colocar no currículo ou demonstrar sua condição de transexual ou travesti com medo da exclusão na vaga”, conta. Keila diz que isso acontece porque a maioria das empresas assume essas pessoas como homens ou mulheres indicados na certidão de nascimento. Para a presidente da associação, faz-se necessária a criação de políticas públicas específicas para abordar a questão. “Iniciativas de educação formal, incluindo essas pessoas em cursos profissionalizantes, são importantes para que elas consigam disputar o mercado de trabalho formal”, explica.

Parcerias são saída

Keila ressalta que iniciativas nesse sentido podem ser fruto de parceria da sociedade civil com o governo, com o objetivo de trazer reparação e reverter a exclusão dessa população. “Assim, essas pessoas não ficariam apenas na prostituição, que é o que acontece na maior parte das vezes, de acordo com dados da Antra: nossa pesquisa de 2017 revelou que 90% dessa população tinham essa atividade como fonte de renda”, explica. Além de formação, é importante contornar e promover conscientização entre os empregadores. “Pessoas trans podem ter um currículo qualificável para aquela aptidão, mas quando se apresentam para a entrevista e a identidade de gênero destoa da forma tradicional, como está no registro de nascimento, já vem a exclusão, a empresa nem deseja fazer o teste”, lamenta. Em vagas de atendimento ou contato com o público, é raro encontrar pessoas trans. De acordo com Keila, esses trabalhadores são mais aceitos em funções em que não precisam ser vistos.

“Atualmente, as empresas que mais empregam transexuais, transgêneros e travestis são os call centers, em que eles não atendem os clientes pessoalmente, apenas por telefone”, diz. Também é possível encontrar, com menos frequência, essas pessoas em caixas de supermercado e em casas, como empregadas domésticas. Após enfrentar barreiras na contratação, é preciso lidar com obstáculos na função. “Assédio moral e agressão psicológica sempre tem, tanto por parte dos funcionários quanto do empregador. É algo presente. A desqualificação das pessoas apenas pela identidade de gênero também é comum”, conta. “A sociedade ainda não enxerga a população trans como seres humanos. A visão é de algo que eu não saberia nem explicar porque não reconhece direitos nem potencialidades. Por causa da homofobia, essa população continua sendo assassinada, e nada é feito a respeito”, critica Keila. De acordo com a ONG TransGender Europe, o Brasil é o país em que mais transexuais e travestis são assassinados.

Orientações para empregadores

De acordo com a cartilha O Ministério Público e a igualdade de direitos para LGBTI, o Estado deve decretar providências para o acesso ao trabalho pela população LGTI. Tomar todas as medidas legislativas, administrativas e outras que forem necessárias para eliminar e proibir a discriminação com base na orientação sexual e identidade de gênero no emprego público e privado, inclusive em relação à educação profissional, recrutamento, promoção, demissão, condições de emprego e remuneração; e eliminar qualquer discriminação por motivo de orientação sexual ou identidade de gênero para assegurar emprego e oportunidades de desenvolvimento iguais em todas as áreas do serviço público, incluindo todos os níveis de serviço governamental e de emprego em funções públicas, também incluindo o serviço na polícia e nas forças militares, fornecendo treinamento e programas de conscientização adequados para combater atitudes discriminatórias.

Em caso de lgbtfobia, ou presenciar ato discriminatório contra LGBTI, denuncie! Sugestão de como proceder, de acordo com a cartilha do Ministério Público Federal e a Igualdade de Direitos para LGTBI: verifique se as pessoas que presenciaram o ato de violência ou discriminação podem testemunhar; anote nomes, endereços e telefones dessas pessoas; sendo possível e preservada a sua segurança, grave em áudio e/ou vídeo, imprima ou fotografe elementos que considere relevantes para a comprovação do fato; registre um Boletim de Ocorrência (BO) na Delegacia de Polícia (DP) mais próxima. Também é possível denunciar discando 100, o número do Disque Direitos Humanos; acessando o site www.mpf.mp.br; ou comparecendo a uma unidade do MPF no DF ou nos estados (os endereços podem ser conferidos no mesmo site). 

A luta pelo sucesso profissional
Transexuais de Brasília contam suas histórias de superação

Quebrando o tabu


Durante o início da terceira temporada do programa MasterChef Profissionais Brasil, da TV Band, no fim de agosto deste ano, o participante de Brasília Thales Alves, 25 anos, chamou a atenção por ter assumido ser transexual no primeiro episódio. Natural de Formosa (GO) e formado em gastronomia pela Universidade Católica de Brasília (UCB), ele conta que muita gente questionou o porquê de ter feito essa declaração, já que a condição poderia passar despercebida. “Mas o que eu digo é: e por que não falar que sou trans em rede nacional? Quantas pessoas transexuais você conhece dando aula, como chefs de cozinha, em qualquer lugar, em qualquer emprego fora da prostituição?”, questiona. “Eu precisava falar sobre isso porque talvez fosse a primeira e a última vez que eu teria a oportunidade de mostrar que uma pessoa transexual é muito boa no que faz”, explica. “Eu tenho muito orgulho do cara que eu sou e de quem me tornei durante esses anos”, garante. A consolidação como profissional de cozinha veio a custa de muito esforço.

Morando em Formosa, Thales pegava ônibus para estudar no DF diariamente. “Saía muito cedo de casa e voltava muito tarde. Eu fazia faculdade de manhã e de noite, além de desenvolver uma pesquisa de tarde. Passava o dia em Brasília, saía 0h para voltar para casa e pegava ônibus 4h30 para voltar para o DF”, conta. Antes de cursar gastronomia, estudou até o último período de psicologia, mas desistiu para ir em busca de algo que o definisse melhor profissionalmente. Foi então que Thales se encontrou na cozinha. Além de fazer graduação na área, o jovem cursou especialização em educação para poder dar aulas. Assim, foi professor da UCB por mais de dois anos.

Após a formatura, abriu uma empresa de promoção de jantares com a esposa e a sogra. “Eu tive uma microempresa de eventos, fazíamos jantares exclusivos. Devido ao meu trabalho como professor e a correria do dia a dia, fechei o negócio três meses antes da minha inscrição no programa, já sabendo que algo bom poderia acontecer. Reabriremos a empresa assim que for possível”, avisa Thales. Independentemente do espaço em que esteja atuando, ele luta para que as pessoas possam entender a condição das pessoas trans e parar de ter preconceito. “Em qualquer lugar que eu vá, procuro dizer às pessoas o quão importante é se colocar no meu lugar. Então, eu faço a reflexão com todo mundo, pedindo que fechem os olhos e imaginem um espelho na frente de si mesmos que, quando abrirem os olhos, mostra outra pessoa em seu lugar. É por isso que um trans passa todos os dias”, diz.

Durante a transição em 2016, Thales conta que não sofreu nenhum tipo de discriminação. “No meio do curso de gastronomia, a minha transição ficou visível, porque não acontece de um dia para o outro. Fui extremamente respeitado. Tive todo o apoio dos meus colegas e professores”, lembra. Ele descobriu que há muitos trans “ocultos”  nas cozinhas. “Foi um choque para mim. Há muitos trans em confeitarias, padarias, restaurantes comerciais grandes... Só que esses lugares não assumem seus empregados nessas condições”, lamenta Thales. “Nenhum restaurante os assume no cargo de chef porque, se algo acontecer no salão, é ele quem sai da cozinha e vai resolver e, na maioria das vezes, os empregadores não querem admitir para o mundo que quem cozinha são pessoas transexuais”, conta.

Direito conquistado


Trabalhando no Banco do Brasil há mais de oito anos, Theo Linero, 29, passou a poder usar o nome social ali no começo deste ano. Contador com pós-graduação em engenharia de negócios e mestrando em ciências do comportamento pela Universidade de Brasília (UnB), ele já era identificado dessa maneira na instituição de ensino. Passar a receber o mesmo tratamento no trabalho foi uma conquista. “Pode parecer bobagem, mas o nome é o que o identifica na sociedade, que o faz ser alguém na fila do pão, como dizem. Quando comecei a usar Theo ali dentro, foi como se um novo mundo tivesse se aberto para mim”, diz. Por ter começado a transição em 2017, Theo explica que não teve problemas em terminar os estudos. “Com isso, não sofri preconceito no ambiente escolar ou acadêmico”, diz. O cientista contábil conta que investiu nos estudos para que a formação não fosse desculpa para não ser aceito em uma empresa. “Eu posterguei muito minha transição com esse medo. Priorizei minha educação para que currículo não fosse um problema”, afirma. A competência é outra arma para superar a discriminação. “Quando somos alvo de preconceito, a solução é fazer um trabalho tão bem-feito que não haja o mínimo espaço para crítica. Mostre que não é sua identidade de gênero que define sua competência”, observa. “Eventualmente, ouvi uma ou outra piada não direcionada. Quero acreditar que muito desse preconceito é fruto do desconhecimento sobre o que é identidade de gênero”, afirma.

“Diferentemente de muitos trans, tive sorte no quesito trabalho, considerando que tive respeito e apoio da minha equipe e do banco durante a transição”, avalia.“Se eu pudesse deixar uma mensagem para recrutadores e empresários, diria que eles precisam parar de julgar pela aparência. E, não, não me restrinjo aqui à causa trans, mas permito-me falar em nome de muitas das minorias. É preciso ir além. Dar oportunidade sem olhar fotos, cores ou corpos, mas almas. Várias pesquisas já mostraram que ambientes com diversidade são mais produtivos. Que tal colocarmos isso em prática?”, instiga.

Fonte: Diário de Pernambuco

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