
Ingênuo é pouco para quem pensa
que os filmes e séries de super-heróis são restritamente produtos inofensivos
de entretenimento. Além de tomar para si a parte mais polpuda dos lucros de
Hollywood, a fatia mais progressista da indústria tem usado de forma muito
sábia esse espaço para dar voz para segmentos sociais que antes eram excluídos
do grande público. E essa voz acabou de ficar ainda mais alta.
A quarta
temporada da série "Supergirl" fará história na TV americana ao
mostrar a primeira super-heroína transgênera da televisão. E a
missão de interpretar Nia Nal, a heroína Dreamer, ficou com a atriz trans
Nicole Maines, famosa por ser forte ativista em defesa das causas há muito
tempo.
Nicole Amber Maines nasceu em 7
de outubro de 1997 como menino e se descobriu transgênero aos três anos de
idade, quando deixou de ser Wyatt. Ela tem um irmão gêmeo idêntico, Jonas.
Ambos foram adotados por Kelly e Wayne Maines, um casal conservador de classe
média de Maine, nos Estados Unidos.
"Quando vou virar
menina?"
Aos 2 anos de idade, os
questionamentos de Wyatt eram sempre os mesmos: "Quando vou virar
menina?" ou "Quando meu pênis vai cair?". Foi o começo de uma
jornada intensa de dúvidas sobre gênero para os pais então despreparados.
Enquanto Kelly tentava ajudar, Wayne se afastava e tentava ignorar a situação.
Foram anos até a aceitação do
pais se instalar por completo. "Encare isso, pai, você tem um filho e uma
filha", disse Jonas, aos 9.
Quando estavam prestes a iniciar
o ensino básico, os irmãos ganharam uma festa para conhecer a vizinhança. Foi
quando Wayne se deparou com Wyatt no topo da escada com um vestido rosa
escolhido em uma loja de brinquedos e um sorriso de ponta a ponta do rosto.
"Wyatt, você não pode usar
isso", bradou o pai, em volume suficiente para silenciar a festa e colocar
toda a atenção na criança. Seu sorriso logo foi substituído por uma expressão
de confusão e medo.
Com a situação longe de estar
apaziguada, Kelly interveio e disse para Wyatt que aquela não era a melhor
ocasião para o usar o vestido. "Eu não posso ser eu mesma. Jonas veste o
que quiser. Por que eu não posso?", perguntou.
Kelly sabia que era verdade e não
estava sendo justa com Wyatt. "Vamos apenas tentar conhecer as pessoas
antes", disse a mãe.
A cena é um dos relatos presentes
no livro "Becoming Nicole: The Transformation of an American Family"
(Tornando-se Nicole: A Transformação de uma Família Americana, em tradução
livre), escrito por Amy Ellis Nutt, jornalista do "Washington Post",
que mostra a falta de preparo dos pais para lidar em uma situação como esta.
"Quando a deixamos sair de
vestido e a vi totalmente reluzente de felicidade, eu percebi que tinha que
mudar quem eu era", disse Wayne, com lágrimas nos olhos, em entrevista ao
programa "Nightline", da ABC, em 2015.
Era o momento de Wyatt ficar para
trás. Mas como ela chegou ao nome Nicole? "Eu decidi provavelmente na
quarta série. Comecei a procurar por personagens da TV que eu adorava e
poderiam se parecer comigo. E aí decidi por Nicole".
E a personagem que deu a inspiração
era Nicole de Zoey 101, do canal Nickelodeon. "Ela era divertida e
desengonçada. Ela é parecida comigo. Eu sou Nicole", afirmou.
A primeira batalha
O ativismo nasceu cedo dentro de
Nicole, ainda na escola, por causa de um direito básico e fundamental: ir ao
banheiro. Em 2013, ela foi impedida de frequentar o banheiro feminino após a
reclamação do avô de uma de suas colegas. A direção da escola a proibiu de usar
a instalação. No lugar, ela deveria usar o banheiro dos funcionários.
A família de Nicole entrou com
uma ação na Justiça por sentir que ela havia sido discriminada. Em junho de
2014, a Suprema Corte de Maine concluiu que o distrito escolar havia violado
seus direitos humanos. A família Maines recebeu uma indenização de US$ 75 mil e
a escola foi proibida de impedir alunos transgêneros de entrar no banheiro com
qual se identificassem.
O caminho óbvio era o ativismo
O papel em "Supergirl"
será uma plataforma para Nicole levantar debates, ganhar representatividade e
exercer sua influência na mídia. Mas este não é o início de sua jornada, e sim
uma etapa de um caminho percorrido desde o episódio do banheiro da escola.
O livro "Becoming
Nicole", lançado em 2015, traz uma reunião de crônicas sobre os desafios e
adaptações da família durante todo o processo. A publicação entrou na lista dos
títulos mais vendidos do "New York Times" e recebeu diversos prêmios.
Naquele mesmo ano, Nicole
participou do programa "Royal Pains", no qual falou sobre os perigos
sofridos por uma adolescente trans no uso de hormônios. No ano seguinte, foi
entrevistada no documentário "The Trans List", da HBO, em que contou
histórias pessoais sobre sua batalha, além de dar depoimentos para outros
registros em vídeo, como "Not Your Skin".
Toda essa representatividade a
colocou no holofote de inúmeros programas de TV, no qual fala com orgulho sobre
sua trajetória.
Nesta última San Diego Comic-Con,
Nicole ainda falou sobre a responsabilidade e importância de ser a primeira
super-heroína trans na TV, uma das questões muito debatidas nos últimos anos.
"Muitas pessoas estão
realmente ansiosas para contar a história das pessoas transgêneras,
especialmente porque é uma questão muito importante para a nossa sociedade
hoje. Parece justo termos um super-herói trans para as crianças trans poderem
se inspirar. Eu gostaria que houvesse uma quando eu era pequena", contou a
atriz, hoje com 20 anos.
Agora, é só esperar para ver a primeira
super-heroína trans da TV na quarta temporada de "Supergirl", que estreia
em 14 de outubro.
Fonte: Uol
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