Os desafios de jovens transgêneros para sobreviverem aos pátios e salas de aula no Brasil



Aos 10, Isadora era uma garota como qualquer outra. Ou quase. Ela estudava perto da sua casa, em Cotia, na Grande São Paulo, em uma escola particular que seguia a pedagogia Waldorf, abordagem multidisciplinar de origem alemã. Cheia de energia, a menina fazia aulas de esportes e adorava o curso de teatro. Mas, às vezes, se sentia deslocada. Não conseguia se misturar com os colegas. Os meninos também não lhe davam atenção e, um pouco sem perceber e sem entender muito bem o motivo, ficava isolada durante a maior parte das aulas.

Aos 11, Theo estava prestes a entrar na puberdade quando sua mãe notou um comportamento diferente. Na passagem entre a 5ª e a 6ª série do ensino fundamental, ele começou a ganhar peso, vivia encapuzado e vestia moletons enormes. Tentava se esconder no cantinho do sofá da sala, de onde assistia a programas de TV, falava pouco e mantinha distância da lição de casa. Ir para a escola se tornava uma tortura cada vez maior para ele, que nem parecia o mesmo de tempos atrás.

Mais do que uma simples dificuldade de entrosamento com as outras crianças, havia outra questão. Theo e Isadora são a mesma pessoa. O isolamento entre os colegas de classe e a falta de informação sobre temas como orientação sexual e identidade de gênero fizeram com que ele sofresse de depressão e síndrome do pânico. No meio dessa crise, o desempenho escolar e de outras atividades de Theo acabaram prejudicados.

“Naquela época, parei de fazer praticamente todas as coisas que mais gostava: teatro, natação e os outros esportes. Eu não me entendia, não me aceitava e não me amava do jeito que eu era. Não conseguia me ‘encontrar’, não sabia quem eu era nem por que era diferente. Não sabia o nome disso. Só sabia que eu não era como as meninas. Chegou um ponto em que me perdi por completo. Não tinha esperança, só medo e confusão”, afirma.

Após diversas mudanças de escola, entre uma instituição pública e várias outras privadas, remédios para depressão, sessões na psicóloga, reprovações e desistências, Theo parou definitivamente de frequentar a sala de aula em 2014, aos 16 anos, quando  cursava o 1° ano do ensino médio. “Ele começava a frequentar uma atividade e depois parava. Não conseguia interagir na sala de aula. Depois vieram as crises de pânico”, afirma Cláudia Heinrich, a mãe de Theo.

Hoje com 20, Theo sonha em ser dublador. Ele pretende concluir o ensino médio em breve, por meio do Encceja (Exame Nacional para a Certificação de Competências de Jovens e Adultos), um programa do Ministério da Educação em que o aluno faz provas para obter o diploma de conclusão do ensino sem precisar comprovar frequência escolar.

Desde 2017, o jovem se identifica como um homem transexual, pediu a retificação de seu nome nos documentos e, há alguns meses, começou a hormonização. Até assumir a identidade de gênero masculina, Theo passou por diversos conflitos. Foi ajudando a irmã, que é uma garota transexual, que ele entendeu que vivia o mesmo dilema e precisava se aceitar também.




IDENTIDADE DECLARADA

A transexualidade incide em menos de 1% da população mundial. Em junho de 2018, a OMS (Organização Mundial da Saúde) retirou os transtornos de identidade de gênero do capítulo de doenças mentais e inseriu na classificação sobre saúde sexual.

No Brasil, a população transexual ainda vive sob a capa da invisibilidade. Não há muitos dados oficiais disponíveis sobre o grupo, que não é contabilizado pelo Censo do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). De acordo com especialistas, a identidade de gênero começa a se manifestar na infância, tornando-se ainda mais evidente durante a puberdade e a adolescência. Não por acaso, muitos transexuais vivenciam questionamentos e conflitos internos na fase escolar e, sem apoio adequado, acabam por agravar um quadro de evasão — 82% das mulheres trans e travestis abandonam o ensino médio entre os 14 e os 18 anos, de acordo com levantamento de 2017 feito pela RedeTrans (Rede Nacional de Pessoas Trans do Brasil) com ONGs.

Há vários centros de atendimento no país a pessoas trans maiores de 18 anos. Mas a atenção à questão na infância e adolescência é considerada incipiente. Países como Canadá, Holanda e Bélgica estão pelo menos duas décadas à frente, atuando no acompanhamento de pessoas trans nessas faixas etárias, na publicação de artigos científicos e na proposição de protocolos de atendimento.



As exceções no Brasil ficam por conta de três grandes centros de atendimento voltados a crianças e adolescentes com traços de transexualidade: um no Rio Grande do Sul e dois em São Paulo.

Um deles é o AMTIGOS (Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual), ligado ao Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas de São Paulo. “Na faixa dos três aos seis anos, já é possível observar e perceber se a criança refere-se a si como menina ou menino. Quanto mais persistente, insistente e consistente for a variação de gênero, há mais chances de ser um caso transexual. Se a criança confirma essa variação até o início da puberdade, dificilmente a questão irá se reverter”, afirma o psiquiatra Alexandre Saadeh, coordenador do serviço e que desde 2015 parou de atender adultos para se dedicar a crianças e adolescentes. “Para um adulto, o acompanhamento médico tem um efeito reparador. Para uma criança, funciona como uma ação preventiva, em que você consegue prevenir o bullying na escola e dramas familiares”, completa.

O acompanhamento aos menores de 18 anos é realizado nas esferas da vida escolar e familiar, com orientação a pais e professores. Consiste em observar e, especialmente, ouvir as questões trazidas pela criança. “Esse é um momento (puberdade) muito importante para a população transexual. É nessa fase que, se temos certeza de que vai evoluir para um caso de transexualidade, conversamos com a criança e os pais, fazemos uma avaliação psicológica, pediátrica e podemos ou não indicar o bloqueio da puberdade, seguindo o protocolo holandês (baseado em diagnóstico, psicoterapia e ambiente de apoio)”, explica.

Independentemente de ideologia e religião, essa questão está aí. Se a escola não discutir, ela vai continuar invisibilizando uma condição que existe.

O bloqueio da puberdade adia, até os 16 anos, o desenvolvimento dos caracteres sexuais secundários e ajuda os pais e a criança a ganhar tempo para definir sobre a transição. Ao atingir essa idade, se a transgeneridade for confirmada, começa o tratamento hormonal e a puberdade se desenvolve de acordo com o gênero com o qual o paciente se identifica. Se ao longo do acompanhamento o adolescente revelar identificação com seu sexo biológico, o bloqueio é suspenso e a puberdade ocorre normalmente.

Além do acompanhamento médico, o psiquiatra defende a importância das questões de identidade de gênero e orientação sexual serem abordadas pela escola, como forma de prevenção. “Os estudantes precisam saber que existe a transexualidade e que essa população precisa ser respeitada e aceita em sua individualidade, particularidade e diversidade. Muitas dessas crianças e adolescentes sofrem bullying, abandonam a escola em função das mudanças corporais, entram em depressão, tentam cometer suicídio, são apedrejadas, sofrem violência sexual... Então, tem que se discutir isso na escola”, afirma.



AMBIENTE HOSTIL

Os casos de evasão escolar provocados por conflitos e dificuldades de adaptação de estudantes transexuais não são registrados pelo Ministério da Educação. Apesar de haver um consenso sobre a ideia de que a escola é um espaço democrático, que funciona como referência para a socialização de crianças, adolescentes, jovens e adultos em geral, há dados que revelam que tanto as escolas públicas quanto as privadas oferecem um ambiente hostil e pouco inclusivo, além de serem terreno fértil para a LGBTfobia e a discriminação de pessoas trans.

É o que aponta a Pesquisa Nacional sobre o Ambiente Educacional no Brasil sobre as experiências de adolescentes e jovens LGBT. O levantamento, divulgado em 2017, diz que 73% dos estudantes que se declararam lésbicas, gays, bissexuais, travestis ou transexuais foram agredidos verbalmente. Outros 36% relataram ter sido vítima de agressões físicas. Ainda de acordo com a pesquisa, 60% dos alunos ouvidos disseram se sentir inseguros na escola por serem LGBT.

“Você imagina o desespero que deve ser isso para uma pessoa trans. O que significa ela tentar se afirmar em uma identidade que não corresponde àquele corpo, em transformação, em um ambiente como é o das nossas escolas. Em que ninguém sabe muito bem o que é isso [a transexualidade], em que tem gente que associa a preceitos religiosos e até a uma doença, que inclusive era chancelada até ontem pela OMS, como doença mental. Não é que essas pessoas abandonam a escola. Elas são excluídas, não aguentam ficar ali dentro”, afirma Cláudia Vianna, professora sênior do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da USP (Universidade de São Paulo).

Autora de pesquisas, artigos e livros com ênfase em política educacional, relações de gênero e diversidade sexual, Cláudia Vianna destaca que o foco dado aos transexuais no Brasil revela como a sociedade enxerga o grupo. “Observe que a gente tem muito mais dados referentes a assassinatos e agressões do que de escolarização dessa população. Nas pesquisas, esse grupo é geralmente associado a mortes e crimes. Mas quando você busca informações sobre a sua escolarização, ainda há poucos dados sistematizados”, afirma.



Muitos dos jovens transexuais ouvidos pelo TAB relatam que a dificuldade de permanência na escola passa pelo simples uso do banheiro, que se torna uma questão problemática, já que não há um consenso sobre as identificações de “masculino” e “feminino”. Por falta de conhecimento sobre a condição de transgeneridade, muitos deles só conseguem fazer a transição após deixar o período escolar, ao entrar na fase adulta.

É o caso de Maxine Fernandes, 21, uma mulher transexual que define sua vida escolar como “um inferno”. “Eu era um menino muito afeminado e, desde a 1ª série, alguns me chamavam de viado, de bicha. Um dia, quando estava na 5ª série, dois garotos me seguiram até minha casa e, no caminho, me derrubaram no chão e deram socos e chutes. Sinto muita angústia quando penso nessas memórias”, afirma.

Quando me descobri gostando de uma mulher, eu não me aceitava como lésbica, não gostava desse rótulo, de ser uma mulher que gostava de outra mulher. A escola explicar só o que é gay e lésbica, no nosso caso, não adianta nada. Porque isso é uma questão apenas de sexualidade, e não de identidade de gênero.

Assim como Maxine, Sanara Santos, 19, teve de conviver com insultos, agressões físicas por colegas e, além de não ter encontrado um espaço para o tema no núcleo familiar, não recebeu informações suficientes sobre questões de gênero em sala de aula. “Tive alguns momentos bons na escola, mas também foi um processo um tanto violento. Tudo seria muito mais fácil se eu tivesse recebido orientação da escola e dos meus pais. Mas eles também não sabiam, nunca tinham ouvido falar sobre isso”, lamenta.

Sem espaço para abordar o assunto em casa e com pouca orientação escolar, muitos dos adolescentes recorrem a pesquisas na internet, ficam sabendo sobre a existência de transexuais por programas de televisão ou só quando começam a frequentar outros círculos sociais. “O meu ambiente escolar era muito tradicional e fechado. Eu não consegui me abrir para ser quem eu sou. Só no segundo colegial conheci um grupo de pessoas ‘diferentes’, que me salvou. Um apoiava o outro”, lembra Nicholas Freitas, 22, que começou a se descobrir entre 15 e 17 anos, mas só conseguiu assumir a identidade trans recentemente.



A VEZ DA RESISTÊNCIA

Algumas iniciativas se destacam na discussão sobre um ambiente educacional mais inclusivo no Brasil. Em São Paulo, o programa Transcidadania atua na reintegração ao ambiente escolar de membros da comunidade LGBT considerados em situação de vulnerabilidade social. Os cerca de 160 estudantes beneficiados recebem um valor mensal para assistir a aulas e concluir a escolaridade básica.

Raylana Sheldon, 45, é uma das beneficiadas. Aluna do 3° ano do ensino médio, ela viu no programa a oportunidade de voltar à sala de aula após ficar 17 anos sem estudar. “Eu cresci no interior da Bahia e nunca sofri bullying na escola. Inclusive, o diretor era gay e nunca tive problemas com a diretoria. Nas datas comemorativas, eu me apresentava no palco. É claro que sempre há alguns olhares maldosos, mas eu nunca passei por nada pesado. Aqui em São Paulo, a escola onde estou estudando é muito preparada para nos receber. Na sala, há tanto homens quanto mulheres trans, pessoas héteros e cis. Ninguém ouve piadinhas”, afirma.

Posso dizer que fomos muito bem acolhidas. Esse programa nos dá oportunidade, principalmente a travestis e transexuais, de nos expressar, estudar e conviver numa boa. Não vou negar que, um dia, tive que atuar na noite, fazendo programas nas ruas. Mas hoje não preciso mais disso e agora posso sonhar com outro futuro.

Diretora da escola estadual Santa Rosa de Lima, localizada em uma área periférica de São Paulo, Paula Beatriz Cruz, 47, é um símbolo para a comunidade LGBT. Filha de uma ex-servente, o ambiente escolar a deixava tão à vontade que ela sabia, desde criança, que seria professora. Mas também desde criança ela manifestava traços de transexualidade e chegou a tomar remédios para “curar” a condição que, até então, era considerada uma doença.

Hoje, a diretora defende que a escola é um espaço de formação constante em que a diversidade deve ser discutida e respeitada, em todos os setores. “Desde a pessoa que está na portaria, quem atende na secretaria, os professores, até o diretor. Insisto que deve existir uma formação constante sobre a diversidade, que se deve explicar claramente o significado de cada letra da sigla LGBTTI (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros, Travestis e Intersexuais) e quantas letras mais vierem”.



ALUNOS EM AÇÃO

Em algumas escolas, professores se unem a estudantes para organizar seminários, rodas de conversas, gincanas e atividades culturais em torno de temas como sexismo, valorização da diversidade sexual e combate à homofobia, lesbofobia e transfobia.

No Distrito Federal, o professor de história Alexandre Magno desenvolve desde 2014 o Diversidade na Escola, no Centro de Ensino Fundamental 01, conhecido como Centrinho, em Planaltina.

No Rio de Janeiro, sete adolescentes do ensino médio se uniram para organizar o Quebrando Tabus, um projeto contra homofobia realizado no Colégio Estadual Monsenhor Miguel de Santa Maria Mochón. A iniciativa se propõe a contribuir com uma convivência mais acolhedora e respeitosa, por meio da informação.

A escola comunitária Instituto Casa Viva, localizada no bairro Cidade Jardim, em Belo Horizonte, se juntou à organização social Transvest, que atua na inclusão de travestis, transexuais e transgêneros na sociedade, para oferecer aos estudantes atividades educativas contra a homofobia, no projeto Formação para a Vida.
Na zona norte da capital paulista, a Escola Estadual Professor Joaquim Luiz de Brito realiza, desde 2013, a Semana da Filosofia Brito sem Homofobia. Ao longo do ano, a escola recebe ações específicas e promove uma semana de atividades educativas que incluem apresentações de shows, filmes, atividades lúdicas, grupos de dança, exposições, oficinas, grupos de estudos e palestras, com apoio do Museu da Diversidade.

“Hoje é possível perceber uma diferença de comportamento entre os alunos. Eles estão mais cuidadosos com as palavras, ao lidar com colegas. Não vemos mais violência contra os LGBT em sala de aula. Aqueles que chegam de outras escolas trazem bullying homofóbico. Os que já estão aqui corrigem. E aqui eles têm a liberdade para ser quem são. Eles podem andar juntos sem sofrer agressões ou ser vítima de olhares maldosos”, afirma Fabio de Lima, professor de filosofia e idealizador da Semana.

A aluna Danielle Radiija, 17, se descreve como uma mulher transgênero e diz que o projeto a ajudou a se entender e a gostar de si. “Sempre tive um jeito afeminado, só andava com meninas. Muitos me chamavam de viado e, por não me aceitar, eu ficava com raiva e entrava em brigas. Eu frequentava a igreja evangélica e odiei o projeto no primeiro ano. Mas quando comecei a participar, passei a me entender e aceitar melhor”, afirma.

Saber que existiam outras categorias de orientação sexual foi um alívio para Ana Karolaine Dias dos Santos, 16,  que depois de negar para si mesma suas preferências, hoje se reconhece como bissexual. “Quando a pessoa ainda está se descobrindo e entende que há uma abertura sobre o assunto [sexualidade], que não é tão fechado, pode ver que isso [bissexualidade] é normal e está tudo bem”, afirma.

A escola deve tratar a questão da diversidade porque muitas famílias têm suas particularidades. Ninguém vai se tornar homossexual ou trans só porque ouviu falar sobre isso. Ninguém 'vira' nada. Você simplesmente é.

O fato de haver espaço para os estudantes tratarem do assunto com naturalidade na escola fez com que Caio Ribeiro Lima, 16, não se sentisse tão cobrado a se definir sobre sua orientação, o que lhe deu mais tempo para se entender como bissexual. “Já sabia que gostava de meninos e meninas, mas para mim sempre foi difícil escolher. Minha família e as outras pessoas me cobravam, tipo ‘você é o quê?’. Mas aqui não senti essa pressão. No colégio anterior, chegavam para perguntar se eu era gay ou hétero. Aqui chegavam em mim para dizer: ‘você é um cara legal de conversar’. Não tem o grupinho dos héteros, dos gays ou dos bi. Todo mundo pode ficar junto”.

Mesmo para os estudantes heterossexuais e cisgêneros, a Semana ajuda a entender melhor sobre a diversidade e outros temas relacionados. “Antes, eu só conhecia o básico e não sabia que existiam tantas formas para definir a sua sexualidade. Eu acredito que, quanto antes você desconstruir o preconceito, melhor. E quanto antes você descobrir o seu gênero, melhor também, para ser feliz e saber quem você é”, afirma André Carlos Souza, 17.

Fonte: UOL

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